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“O álcool é mau tranqüilizante, torna pessoas infelizes ainda mais infelizes”
O estudo do alcoolismo começou para o psiquiatra americano George E Vaillant apaenas como a chance de obter uma bolsa na universidade Harvard. E virou uma paixão qie já dura quase trinta de seus 65 anos. Na origem dessa paixão está a maior pesquisa já feita sobre o tema no mundo.
Durante cinqüenta anos, pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, acompanharam a vida de 600 homens para identificar as causas de um problemas que atinge 10% da população mundial – ou seja, 600 milhões de pessoas.
Essa empreitada monumentalmente é o fundamento do livro A História Natural do Alcoolismo Revisitada, escrito por Vaillant com base na pesquisa, da qual foi coordenador por duas décadas.
É considerada uma das obras mais importantes sobre o assunto. As histórias dessas pessoas o levaram a conclusões originais. Uma delas é que, ao contrário do que defendem muitos especialistas, não existe o gene do alcoolismo, e sim um conjunto de genes que tornam o indivíduo vulnerável à dependência de álcool.
“É uma doença provocada por múltiplos fatores, um drama que envolve praticamente todas as áreas da medicina”, diz Vaillant, que participou na semana passada, no Rio de Janeiro, do 13º Congresso Brasileiro de Alcoolismo.
Nesses quase trinta anos estudando o alcoolismo, qual a principal conclusão a que o senhor chegou?
Vaillant – Minha principal convicção hoje é que o alcoolismo é um problema de dimensões trágicas ainda subdimensionadas. O maior dano do alcoolismo é a destruição de famílias inteiras. Para citar um só exemplo: nos Estados Unidos, 50% de todas as crianças atendidas nos serviços psiquiátricos vêm de famílias de alcoólatras. E boa parte dos abusos cometidos contra crianças tem raiz no alcoolismo.
Há muita divergência entre especialistas na definição do que seja alcoolismo. Suas pesquisas concluem que é um sintoma ou uma doença?
Vaillant – Sem sombra de dúvida é uma doença. O alcoolismo é resultado de um cérebro que perdeu a capacidade de decidir quando começar a beber e quando parar. Os japoneses têm um provérbio que diz “Primeiro o homem toma uma bebida, e depois a bebida toma o homem”. O indivíduo alcoólatra é alguém que perdeu a liberdade de escolha. A questão é que esse limite é muito tênue. Há muitas nuances, inclusive no diagnóstico. O ponto exato no qual o abuso que leva alguém a ser preso por dirigir alcoolizado merece o rótulo de alcoolismo é tão incerto quanto o limite entre o amarelo e o verde no espectro de cores.
Em relação à herança genética, o que se conclui a partir do acompanhamento dessas 600 pessoas? Existe o gene do alcoolismo?
Vaillant – Não é tão simples. O alcoolismo, como as demais doenças psiquiátricas, é determinado por um conjunto de fatores genéticos e condições sociais. Há muitos genes que permitem a alguns indivíduos beber mais que outros sem se sentir mal, sem ter dor de cabeça, sem se tornar viciados. E há muitos outros que contribuem para o alcoolismo. Se seus pais e avós forem alcoólatras, esse é um sinal de alerta. Você deve usar álcool com muito cuidado, porque sua predisposição genética é mais forte que a de um filho de pais não alcoólatras. Mas, se não houver um fato que desencadeie a doença, a pessoa pode passar a vida toda sem ter problemas com álcool.
O importante é que a carga genética não equivale a uma condenação ao alcoolismo, assim como ser filho de músicos não transforma ninguém em violinista. Na pesquisa isolamos um grupo de 398 pessoas, das quais 72 desenvolveram dependência de álcool. Entre os 178 indivíduos sem nenhum parente com história de abuso de bebida, apenas dezoito se tornaram dependentes. E, no universo das 71 pessoas que tinham quatro ou mais parentes nessa situação, 25 se tornaram alcoólatras. É uma diferença expressiva, que mostra a influência genética. No entanto, mesmo nesse segundo caso, a maior parte das pessoas não desenvolveu abuso de álcool.
Existem traços de personalidade que permitem prever um futuro alcoólatra?
Vaillant – Isso é uma tremenda bobagem. A idéia de uma personalidade alcoólica é uma visão que só se sustenta retrospectivamente. Quando se acompanha um indivíduo desde a infância, como no nosso estudo, fica claro que não é possível detectar numa criança ou num pré-adolescente traço algum que permita antever que eles se tornarão alcoólatras. Alcoolismo cria distúrbios de personalidade, mas distúrbios de personalidade não levam necessariamente ao alcoolismo.
Essas opiniões não são compartilhadas por boa parte dos especialistas no tema mundo afora.
Vaillant – Mas esses especialistas não têm como voltar no tempo para estudar seus pacientes antes que eles se tornassem alcoólatras. Todo mundo que fez estudos prospectivos concorda comigo. Isso acontece porque, como o alcoolismo é uma doença crônica que afeta o sistema nervoso central, o relato de suas vítimas é freqüentemente pouco confiável. A melhor maneira de ter a história real é acompanhando o indivíduo desde antes do surgimento da doença.
Qual a diferença entre alcoolismo e outras dependências?
Vaillant – A principal diferença diz respeito ao tipo de droga. Opiáceos são tranqüilizantes. Pessoas infelizes sentem-se melhor com esse tipo de droga. Mas o álcool é um mau tranqüilizante. Ele tende a fazer as pessoas infelizes ficarem mais infelizes. Álcool piora a depressão. A pequena euforia que caracteriza o pilequinho é sintoma do início da depressão do sistema nervoso central. A autocensura some momentaneamente, dando uma sensação de bem-estar. Entretanto o resultado final é um indivíduo mais infeliz.
Culturalmente o álcool é associado a alegria e festas. Isso não acaba estimulando o consumo excessivo de bebida?
Vaillant – A associação de bebida a festas é ancestral, e ela em si não é nociva. Mas seria bom que a embriaguez fosse encarada como algo grotesco. Não associá-la a alegria e diversão faria muita diferença. Nossa cultura está começando a achar que o cigarro é ruim. No entanto continuamos achando que ficar bêbado numa festa é divertido. E as autoridades não estão tão preocupadas com essa mudança de mentalidade como estão em relação ao cigarro. Já existe a preocupação de não associar fumo a bom desempenho em esportes, por exemplo. Em relação ao álcool, nenhuma medida efetiva vem sendo tomada. Só que, do ponto de vista da sociedade, o álcool é um problema muito grave. O indivíduo alcoólatra provoca acidentes de trânsito e sofre de problemas de fígado. Porém o maior mal é que ele provoca problemas graves a sua volta, a começar por sua família.
Em que medida uma pessoa que bebe regularmente está sob o risco de tornar-se alcoólatra?
Vaillant – É um pouco como perguntar se quem dirige regularmente está mais propenso a acidente de trânsito. As únicas pessoas que estão sob o risco de alcoolismo são as que bebem regularmente. Mas, se você nunca passar de dois drinques por dia, pode usufruir socialmente da bebida em festas, casamentos, Carnaval e nunca se tornar alcoólatra.
Dois drinques são a medida?
Vaillant – Se você é uma mulher pequena, um drinque e meio. Um homem corpulento como Churchill (Winston Churchill, ex-primeiro-ministro da Grã- Bretanha) pode chegar a quatro, sem problema. Mas, se não quiser complicação, dois drinques como os que servem num bar. Não como os que você se serve em casa. Dois do tamanho daqueles pelos quais você paga. Quem habitualmente toma mais do que isso já está emitindo sinal de problema. Provavelmente em seguida vai tentar controlar a quantidade de álcool mudando de bebida. Passar do destilado para o fermentado, por exemplo. Também vai começar a prometer beber menos – e não conseguir cumprir – e a sentir-se culpado por coisas ditas ou feitas quando estava sob o efeito do álcool. Esses quatro pontos são sinais de alarme.
O que a família de um alcoólatra pode fazer para ajudá-lo?
Vaillant – Há pouco a fazer. Mas uma coisa é essencial. Não se deve tentar proteger alguém de seu alcoolismo. Se uma mulher encontra seu marido caído no chão, desmaiado sobre seu próprio vômito, não deve dar banho e levá-lo para a cama. O único caminho para sair do alcoolismo é descobrir que o álcool é seu inimigo. Proteger uma pessoa nessa situação não ajuda. Não é papel da família tentar convencer o alcoólatra de que o álcool é um grande mal para ele. Na verdade, nessa situação a família precisa de ajuda. E deve procurar o Al-Anon, a divisão dos Alcoólicos Anônimos voltada ao apoio a famílias de alcoólatras. É muito doloroso conviver com uma pessoa nessa situação. Conviver e conversar com quem tem o mesmo problema é essencial.
Abstinência é realmente o único caminho para livrar-se do alcoolismo ou uma pessoa que foi alcoólatra pode beber socialmente?
Vaillant – Uma pessoa alcoólatra até pode beber socialmente. Da mesma maneira que um carro pode andar sem estepe. Ou seja, é uma situação precária e um acidente é questão de tempo. Num horizonte de seis meses, muitos alcoólatras conseguem manter seu consumo de álcool dentro de padrões socialmente aceitos. Mas, se observarmos um intervalo maior de tempo, como dez anos, vamos verificar que a tendência é ir aumentando gradualmente o consumo até voltar ao padrão alcoólico. Em períodos mais longos, normalmente só quem pára de beber não sucumbe ao vício. Das 600 pessoas que acompanhamos, 200 tornaram-se alcoólatras. Destas, oitenta têm uma recuperação estável, sendo que 75 conseguiram isso pela abstinência e apenas cinco bebem socialmente. Das 120 restantes, oitenta morreram de doenças provocadas pelo álcool. E quarenta continuam bebendo de maneira alcoólatra. Elas têm uma relação com o álcool parecida com a de Elizabeth Taylor com a comida. Ela consegue emagrecer à custa de internações em spas e outros tratamentos. Ninguém pode dizer que ela é enorme de gorda. Mas ninguém pode dizer também que ela tem uma relação normal e saudável com a comida.
Que papel as drogas antiabuso têm no tratamento do alcoolismo?
Vaillant – Na década de 30, descobriu-se uma substância chamada disulfiram (princípio ativo do remédio vendido no Brasil como Anti-etanol), que provoca um tremendo mal-estar quando misturada com álcool. O problema é que, depois de algum tempo, o sujeito prefere deixar de tomar o remédio a parar de beber. Em 1995, uma outra substância, a naltrexona, foi saudada como a pílula antialcoolismo. Ela já era usada no tratamento de viciados em heroína e tem um bom efeito em muitos pacientes, que dizem ter perdido a vontade de beber ou ter reduzido muito a quantidade de álcool ingerido. Essa substância é vendida no Brasil com o nome de Revia, e ainda não tem seu efeito estudado a longo prazo. Mas, em linhas gerais, o que se pode dizer é que drogas podem funcionar como apoio por no máximo um ano. O problema é que é muito difícil tirar algo de alguém sem oferecer alternativas de comportamento. Usar essas drogas equivale a tirar o brinquedo de uma criança e não dar nada no lugar.
Qual sua avaliação sobre os Alcoólicos Anônimos?
Vaillant – Como terapia, é parecida com as terapias behavioristas, que pretendem obter uma determinada mudança de comportamento. A diferença é que é um tratamento muito barato, e que dura para sempre. Além disso, tem um componente espiritual importante. Terapias ajudam a não beber, mas os Alcoólicos Anônimos dão ao indivíduo um círculo de amigos sóbrios. Dizem que é preciso ficar abstêmio, mas lhe dão significados, amigos, espiritualidade. É o melhor tratamento que temos.
As estatísticas confirmam isso?
Vaillant – É muito difícil ter estatísticas precisas. O que sabemos é que cerca de 40% das abstinências estáveis são intermediadas pelos Alcoólicos Anônimos. E os 60% restantes passam por fatores sobre os quais não temos conhecimento algum. A respeito disso há um caso interessante. O doutor Griffith Edwards, um dos maiores especialistas do mundo em alcoolismo, ministrou tratamentos distintos a dois grupos de pacientes. No primeiro, aplicou o que existia de mais moderno, tanto em termos de terapia quanto de medicamento. No segundo, fez acompanhamento terapêutico mensal. Ao final de um ano, os resultados foram muito parecidos.
Qual o caso mais impressionante de recuperação que o senhor encontrou ao longo de todos esses anos?
Vaillant – Foi o de um homem que sustentava seu alcoolismo com a prostituição, relacionando-se tanto com mulheres quanto com homens. Tinha chegado a um ponto de degradação que se protegia do frio cobrindo o corpo com folhas. Por intermédio dos Alcoólicos Anônimos, ele se recuperou depois de uma longa batalha e tornou-se o sóbrio e feliz dono de uma transportadora de móveis, capaz de carregar um piano sozinho. Ele também é um bom exemplo de como é difícil detectar com precisão o que leva alguém a se tornar alcoólatra. Sua mãe morreu quando era muito pequeno, e foi criado por tias. A conseqüência direta dessa perda em sua vida foi que ele se tornou violento. Sintomaticamente, só tinha problemas com a polícia em aniversários da morte da mãe. Mas, isoladamente, essa história não explica o desenvolvimento do alcoolismo.
O senhor bebe?
Vaillant – Bebo socialmente, e sempre às refeições. Não dispenso um ótimo vinho francês.
O senhor tem cinco filhos. Como lidou com a bebida na educação deles?
Vaillant – Todos eles foram autorizados a tomar vinho nas refeições desde os 10 anos de idade. Hoje são adultos e bebem socialmente, sem nenhum problema.
Fonte: Matéria publicada na revista Veja – Editora Abril