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Na segunda-feira passada, dia 5 de setembro, o cidadão Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira foi internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para tratar de um sangramento digestivo que ameaçava matá-lo. Aos 57 anos, ele é um rosto familiar aos brasileiros. Ídolo do Corinthians e da Seleção Brasileira, foi um dos grandes jogadores do futebol mundial nos anos 1980, notável tanto pela elegância e precisão de seus passes quanto por suas posições públicas contra o regime militar. Formado em medicina, inteligente e carismático, o Doutor, como costuma ser chamado, assumiu, ao deixar os gramados, a função informal de intelectual do futebol, alguém capaz de expressar com autoridade a dimensão pública desse esporte que apaixona os brasileiros.
Além disso tudo, Sócrates é também alcoólatra. Ele começou a beber pesado durante a universidade e nunca mais parou, mesmo em seus anos de atleta. Em consequência de décadas de excesso, desenvolveu cirrose hepática, doença degenerativa que destrói o fígado e provoca o colapso do restante do organismo. A cirrose causada por álcool mata mais de 11 mil pessoas por ano no Brasil. Sócrates esteve assustadoramente próximo desse desfecho na semana passada – um drama que tocou milhões de pessoas que o admiram e trouxe para os holofotes, novamente, a epidemia subterrânea de alcoolismo que devasta o país. “O drama de uma pessoa pública querida mostra que pessoas inteligentes e fortes também podem se tornar dependentes”, afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeiras, da Universidade Federal de São Paulo, uma das maiores autoridades em alcoolismo no país. “Sócrates é um homem bem-sucedido, brilhante e, além de tudo, médico. Se aconteceu com ele, pode acontecer com qualquer um.”
O Brasil tem um número de alcoólatras estimado em 15 milhões, o dobro da população da Suíça. Mas a realidade pode ser ainda pior. Os médicos da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Outras Drogas, que se dedicam a estudar a dependência química no Brasil, estimam que, na verdade, 10% dos 192 milhões de brasileiros, ou 19 milhões, tenham problemas graves com a bebida. O alcoolismo mata 32 mil pessoas por ano no Brasil, está por trás de 60% das mortes no trânsito e 72% dos homicídios. Mas é algo que nosso cérebro parece ignorar para seguir operando com sanidade – até que a história de um ídolo popular como Sócrates rompe essa barreira de proteção e indiferença.
No dia 19 de agosto, ele foi internado às pressas no Hospital Albert Einstein. Seu fígado deteriorado pela cirrose comprometera a circulação sanguínea no aparelho digestivo. O órgão normal tem a consistência de uma gelatina porosa. Na cirrose, adquire a consistência de borracha. O sangue não mais segue seu caminho, fica represado e desencadeia sangramentos no estômago e no esôfago, que podem ser fatais.
Naquela primeira internação, Sócrates esteve bem perto de morrer. Primeiro, os médicos tentaram diminuir a pressão interna com medicamentos. Não funcionou. Por meio de uma endoscopia, tentaram também tratar varizes no esôfago. Não resolveu. O sangramento continuou. Na madrugada do dia seguinte, os radiologistas Breno Boueri Affonso e Felipe Nasser foram chamados ao hospital, sinal de que a situação fugia do controle. “Pode-se dizer que somos o Bope. Quando está tudo praticamente perdido, quando não há outra alternativa, pedem para a gente entrar”, diz Affonso. Eles fazem cirurgias minimamente invasivas, também chamadas de cirurgias sem bisturi. “Sócrates sangrava muito. O estado dele era praticamente de choque hemorrágico pré-óbito”, diz Affonso. Os médicos fizeram uma punção no pescoço. Guiados por um aparelho de raios X que funcionava continuamente, introduziram um cateter na veia jugular. No fígado, instalaram um pequeno tubo flexível de 1 centímetro de diâmetro, feito de níquel com titânio, pelo qual o sangue flui. A intervenção durou quatro horas. Sócrates teve uma recuperação rápida e surpreendente. “Como ele foi atleta, seu corpo é uma coisa fantástica. O coração e os pulmões aguentaram coisas que outras pessoas não aguentariam: drogas, perda de sangue, transfusões”, diz Affonso. Sócrates distribuiu autógrafos e tirou fotos com a equipe médica. “Quer dizer que você fez um furo no meu fígado?”, perguntou, brincando, a Affonso. O médico, são-paulino, respondeu: “Sim. E deixei uma marca tricolor lá”.
No dia 27, Sócrates recebeu alta. Na madrugada da última segunda-feira, começou a reclamar de tosse, mal-estar e náuseas. Foi levado ao Einstein de novo. “Ele chegou conversando, mas falando pouco”, diz Affonso. Quando os médicos suspeitaram de um novo sangramento, Sócrates recebeu anestesia geral e passou a respirar com a ajuda de aparelhos para poupar o organismo. Os médicos localizaram um novo sangramento, desta vez no esôfago. Para controlá-lo, bloquearam o vaso e ofereceram outro caminho para o sangue fluir. O que fazer se Sócrates voltar a sangrar? Os médicos poderão tentar fazer novamente tudo o que fizeram até agora, mas a cada intervenção o risco aumenta.
Fonte: Revista Época