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Sócrates Brasileiro se foi. Mestre no futebol, inteligente no trato com os colegas, politizado (e não politiqueiro), doutor dos gramados, médico por formação. Centrado, bem sucedido, admirado, o Dr. Sócrates morreu em consequência do alcoolismo. O binômio médico-doença deu a tônica dos principais noticiários Brasil e mundo afora. O doutor sabia, melhor do que ninguém, os riscos da doença. Ainda assim, agiu como um leigo, sucumbiu à extravagância. Assim como sucumbiram as novas gerações de jogadores (mas não doutores) ao esquecimento.
Antes do jogo do último domingo, jogadores com punhos fechados, para o alto, prestaram bonita homenagem ao ex-capitão da Seleção Canarinho. Finda a partida, o repórter aborda um dos novos craques, vencedor da competição: “e a comemoração, hoje, será com suco de laranja?”. “Nada. Hoje vai ser é com cerveja, mesmo!”, responde sem pestanejar. Dias depois, outro jogador decidiu promover uma festa para comemorar o novo patrocínio. O pai do craque foi entrevistado e informou que o filho não bebia. Piada pronta do entrevistador: “então ensina ele a beber!”. Que alegria, não? Diante desse contrassenso, ou a memória é muito curta ou a abordagem do assunto é pouco longa.
Desde que o mundo é mundo e as sociedades se formaram a bebida alcoólica está presente. Na mitologia de Baco, nos grandes banquetes, no universo religioso, nas rodas de empresários, de políticos, de samba, nas cadeias. Ingerir bebidas alcoólicas tornou-se algo tão natural que nas entrevistas de empregos há a opção “apenas socialmente” para a pergunta sobre o uso de destilados, fermentados e afins. Daí o óbvio desvio de um olhar mais atento sobre o assunto, mesmo quando causa comoção. “Morreu de cirrose? Bebamos!”.
O assunto, a despeito de piadas e frases feitas, é grave. Estudo recente feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) aponta que a mortalidade entre dependentes do álcool no Brasil é quase tão grande quanto a do crack. Segundo a pesquisa, 17% dos dependentes de bebidas alcoólicas morreram após cinco anos. Para se ter uma ideia desse percentual, na Inglaterra o índice é de 0,5% para o mesmo período. Quanto ao crack, por aqui, 30% dos pesquisados vieram a óbito, porém, durante o período de 12 anos. Comparativamente, segundo os estudiosos da Unifesp, os percentuais são muito próximos, com o detalhe de que não se consome crack “socialmente”.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), todos os anos morrem nada menos que 2,5 milhões de pessoas decorrentes de fatores ligados ao uso de álcool – ou o equivalente a 4% do número total de óbitos em todo o mundo. A bebida que faz perder a razão e a saúde, assim, consegue matar mais que a Aids, a tuberculose e a violência, segundo o Relatório Global da Situação sobre Álcool e Saúde da OMS.
É estéril, porém, a insistência no abandono da ingestão de bebidas alcoólicas – pelo menos em contexto geral. As festas continuarão regadas a muita bebida e muitíssima normalidade. É fértil, entretanto, trazer à mesa – mesmo que de bar – a discussão sobre os excessos da bebedeira. O problema, infelizmente, é que o fígado só aperta quando o pior bate à nossa porta. Se tomar a cervejinha é natural – e chegar ao porre completo, com direito a perda do controle das ações, vômitos e gargalhadas da plateia -, encontrar o filho morto atropelado por um motorista embriagado não tem graça alguma. Perceber que é hora de internar um amigo que tem o corpo deteriorado pelos efeitos da bebida alcoólica perde o tom de plateia e emerge o de torcida pela recuperação, pela reabilitação e pela vida.
Sócrates se foi. Admitiu a doença publicamente, deu a oportunidade de alerta à sociedade. Como ícone do esporte mais apaixonante do País, chamou para si a responsabilidade de alertar: se entregar ao jogo do alcoolismo é derrota certa. Mas o dia passou, um novo campeonato foi conquistado e um novo craque saiu dali pronto para “bebemorar”. É o velho jogo da ignorância.
Henrique França é jornalista, mestre em Ciência da Informação e professor universitário
Fonte: Brasil 247