Tempo de leitura: menos de 1 minuto
As bebidas alcoólicas são sempre aliadas ao divertimento e ao poder. Esta é a imagem que todos os dias assistimos na TV. Enquanto isso, muitas pessoas – inclusive crianças e adolescentes – são impactadas pelas propagandas que ressaltam a ‘beleza’ do consumo de álcool. Para o psiquiatra e psicanalista Sérgio de Paula Ramos, há 40 anos trabalhando com dependência química, o poder da indústria do álcool surge a partir de um trabalho de publicidade perverso.
O especialista defende a ideia de que o álcool apresenta riscos que as propagandas omitem e é enfático ao analisar que a dependência do álcool leva ao consumo de substâncias ainda mais nocivas ao organismo. Em entrevista à Vox Objetiva, Ramos apontou para diversos problemas que o álcool acarreta e não poupou críticas ao governo, que ainda investe pouco em campanhas de prevenção ao consumo de bebidas alcoólicas, assim como a educação transmitida pela família, que, por vezes, não vê problemas no consumo de álcool pelo adolescente.
Leia a seguir a entrevista completa:
O senhor já tem 40 anos de experiência no atendimento a dependentes químicos. Quase sempre, escolhas que são definidoras em nossa vida têm relação com acontecimentos, pessoas, casos marcantes. Foi o que aconteceu com o senhor? Por qual razão se deu a opção por essa especialidade?
Recuperar um dependente químico até hoje é um grande desafio para os médicos e demais profissionais de saúde. Uma coisa que me moveu em direção a essa especialidade foi justamente o enfrentamento desse desafio. A outra coisa foi percebida cedo. O meu pai era alcoolista e superou o vício graças a um competente tratamento psiquiátrico. A recuperação que ele teve influenciou muito a minha escolha; muito mais do que o próprio alcoolismo. Pude examinar e perceber intimamente como a vida dele melhorou depois de um tratamento bem-feito.
O senhor defende a ideia de que a dependência química inicia por meio do primeiro gole. Qual a relação da primeira experiência com o vício em outros tipos de droga? É uma questão que envolve sobretudo a curiosidade humana?
A dependência química é uma situação muito complexa e depende do somatório de vários fatores. Dentre eles, os mais relevantes são a genética, experiências infantis de pouco monitoramento por parte dos pais, a presença de algumas alterações na infância, como o déficit de atenção, a hiperatividade, os transtornos de conduta e, depois, o beber precoce na adolescência e a companhia de amigos usuários. Tudo isso funciona como fatores de risco para o posterior desenvolvimento da dependência química. Então é uma doença multideterminada por diversos fatores possíveis.
Por qual razão o álcool continua sendo encarado com certa despreocupação aqui no Brasil, se é a droga de maior impacto social no país?
A resposta é muito simples: nós, brasileiros, somos omissos nessa área e seguimos permitindo que a indústria do álcool faça as suas propagandas cada vez mais perversas. Enquanto reinar a propaganda do álcool, seremos todos induzidos a associar álcool a festa e divertimento e não a tragédia e doença.
Com que idade o brasileiro começa a ter contato com o álcool? Isso se deve a quais fatores?
Nas pesquisas anteriores, o resultado foi grave: mostrava que o brasileiro começava a beber, em média, com 15 anos de idade. Na mais recente pesquisa, a constatação foi ainda mais grave porque a idade diminuiu. A pesquisa apontou que essa iniciação acontece aos 13 anos. Então talvez o Brasil seja um dos países em que mais cedo se começa a beber. A situação é muito preocupante porque sabemos que, quanto mais cedo a pessoa experimenta bebida alcoólica, maiores são as chances de ela se transformar em alcoolista. A efeito de ilustração do que estou falando, crianças que bebem antes dos 13 anos de idade têm 48% de chances de se transformarem em alcoolistas. Segundo a veia americana de beber apenas após os 21 anos, pessoas que iniciam nessa idade a experimentação do álcool têm 9% de chances de se tornarem alcoolistas. Então veja a diferença: quanto mais cedo, mais perigoso.
Por qual razão esse contato é tão precoce no Brasil?
A propaganda perversa do álcool vai incutindo nas nossas mentes que beber é normal, que todo mundo bebe, que o filho de 14 anos tem que beber, a festa de 15 anos não existe sem bebida alcoólica,… Nós estamos sendo induzidos a achar que isso é normal e não estamos vendo o preço altíssimo que estamos pagando por isso.
A indústria das bebidas alcoólicas tem um poderio inegável aqui no Brasil. Por qual razão não conseguimos freá-la, como aconteceu com a indústria do tabaco?
Esse é um grande desafio, né? A indústria do tabaco não foi freada de um dia para o outro. Foi um processo que envolveu alterações em leis. Há mais de 20 anos, a indústria do álcool está instalada no mundo inteiro. Eu tenho a esperança de não morrer antes de ver proibida a propaganda de bebidas alcoólicas. Mas a indústria do álcool aprendeu com o que aconteceu com a indústria do tabaco e sabe como evitar o mesmo desfecho. Isso dificultou a nossa luta.
Na opinião do senhor, como têm sido desenvolvidas as políticas antidrogas aqui no Brasil? De forma adequada, deficitária,… O que precisaria ser revisto?
Eu diria que a única ação brasileira contra o álcool razoavelmente bem-sucedida é a ação de álcool do trânsito. Essa é uma medida que está dando os primeiros resultados. Mas, salvo juízo, é a única que o governo brasileiro faz. Não vejo, por exemplo, uma política consistente que visa erradicar o consumo de bebidas alcoólicas por parte de menores de 18 anos. Qualquer criança que chegue a um bar consegue, a pedido dos pais, comprar. Nós vemos também nas sextas-feiras à noite adolescentes consumindo bebida alcoólica nas ruas.
É uma lógica perversa pensar que o governo se omite e se vende à indústria para depois se comprometer por não conseguir atender de forma adequada aos doentes. Mas é mesmo isso que acontece?
Eu acho que o governo, além de perverso, é ignorante. Ele se ilude com o imposto pago pela indústria do álcool, sem fazer a conta de quanto custa para ele pagar os danos causados pelo álcool. Se você somar tudo o que é recolhido em imposto e o que é gasto com o álcool em termos de tratamento, aposentadoria, acidentes de trânsito, violência, homicídios, suicídios, etc., vai dar um prejuízo de 4,5 vezes superior à arrecadação com os impostos sobre a bebida. Então nem essa conta fizeram direito.
Educação infantil é o ponto?
Eu acho que nós temos que trabalhar com educação em todos os níveis. Quando você vê, por exemplo, um pai conivente quando se depara com o filho menor de idade bêbado, quem tem que ser educado é o pai. Então educação funciona? Funciona, desde que seja em todos os níveis. Este é o caminho: a educação, a informação séria para, paulatinamente, ampliar a percepção de que o álcool faz mal para a sociedade. Nós já começamos a perceber que álcool faz mal no trânsito. Agora temos que começar a ampliar essa percepção.
A reboque da própria definição do que é lícito e ilícito, surgem os problemas que envolvem a saúde das pessoas. O tratamento dos dependentes químicos para na questão da estrutura do sistema público de saúde. A salvação do dependente está unicamente na iniciativa privada?
O sistema de saúde brasileiro como um todo está falido. Ele não atende bem a ninguém. Principalmente, não atende bem nas fases precoces da doença, no momento em que as pessoas precisam ser atendidas. Dependência química não é uma exceção. A chamada luta antimanicomial conseguiu fechar muitos leitos psiquiátricos no país que agora estão nos fazendo falta. O que a gente mais vê é dependente químico nas ruas, abandonados nas cracolândias, embaixo dos viadutos ou, pior ainda, presos. Então quem deveria estar em hospitais psiquiátricos hoje está preso ou dormindo debaixo de pontes.
O Senado Federal discute a legalização da maconha. O que o senhor pensa a respeito disso? Maconha é droga?
Eu acho que nós temos uma quantidade suficiente de drogas lícitas com que nos preocupar. Não precisamos legalizar mais nenhuma porque nós não estamos dando conta de enfrentar o que é considerado legal. Eu fico muito preocupado quando se levanta esse debate em relação à legalização da maconha que, se for liberada, certamente vai aumentar o consumo da droga e criar mais problemas para a rede pública de saúde.