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A cocaína é consumida pela humanidade há pelo menos cinco mil anos. (Escohotado, 1996). Porém, a planta da qual a substância é proveniente, a coca, natural dos altiplanos andinos, já era utilizada por civilizações pré-incaicas florescidas no século X a.C. (Escohotado, 1996; Johanson, 1988). A origem etimológica da palavra ‘coca’ provém da língua aymara e significa “planta” ou “arbusto” (Escohotado, 1996). Para as civilizações pré-incaicas, a planta deu poderes aos homens para vencerem um deus maligno e os incas entendiam que a ‘Mama Coca’, tal como a denominavam, fora um presente dos deuses para que os homens, ao mascar suas folhas, pudessem suportar a fome e a fadiga (Escohotado, 1996). O consumo das folhas era um privilégio da nobreza e sua utilização por soldados, mensageiros e camponeses, salvo autorização real expressa, era considerado crime de lesa majestade (Escohotado, 1996). Os nativos andinos não sabiam extrair das folhas o princípio ativo, mas aprenderam a conserva-lo, misturando à planta substâncias alcalinas (cal) (Johanson, 1988).
Apesar de levada ao conhecimento europeu já nos primeiros anos da colonização espanhola, por Américo Vespúcio (1505), Fernandez de Oviedo (1535) e Nicholas Monardes (1565) (Karch, 1998), as folhas de coca não conseguiram popularidade nesse continente até o século XIX (provavelmente devido à deterioração da planta durante o transporte), permanecendo um costume indígena exclusivo até então (Grinspoon et al, 1985; Johanson, 1988). A primeira publicação científica sobre o assunto, no entanto, apareceu na revista Institutiones Medicae, escrita por Herman Boerhaave, em 1708 (The Vaults of Erowid, 2001).
O interesse europeu pelas propriedades farmacológicas da folha de coca apareceu com efusividade na virada para o século XIX: eminentes botânicos, farmacologistas e médicos da primeira metade do século atribuíram-lhe denominações tais como “tesouro da matéria médica”, “saudável e condutora da longevidade”, “evocadora da potência do organismo, sem deixar sinal algum de debilidade conseqüente” (Escohotado, 1996). Opositores da euforia causada pela descoberta da substância já eram encontrados nesse período, comparavam a coca ao ópio e alertavam para o potencial uso abusivo da mesma (Grinspoon et al, 1985; Escohotado, 1996).
A medicina adotou definitivamente a substância após a obtenção do princípio ativo puro, isolado por Albert Niemann, em 1859 (Karch, 1998). Antes, em 1855, o químico Gaedecke já havia extraído um resíduo oleoso das folhas de coca, ao qual denominou eritroxilina (Johanson, 1988). As indicações da cocaína para o tratamento das farmacodependências, como estimulante incapaz de danos secundários, ideal para exaltar o humor, espantar a depressão e “deixar as damas plenas de vivacidade e charme”, foram publicadas nas principais revistas médicas da época, na Europa e nos Estados Unidos (Escohotado, 1996). Suas propriedades anestésicas foram utilizadas no tratamento de dores de dente e garganta, em bloqueios anestésicos e abriu uma nova fronteira nas cirurgias oftalmológicas (Karch, 1998). Era utilizada pelas vias oral, inalatória ou por meio de injeções intradérmicas (Escohotado, 1996).
Os primeiros produtos comerciais da substância começaram a surgir no início da segunda metade do século XIX (Escohotado, 1996; Karch, 1998). Tais produtos consistiam em infusões revigoradoras de folhas de coca, pastilhas para aliviar dores dentárias, tônicos e bebidas, alcóolicas e não-alcóolicas, que recebiam cocaína em sua composição. Duas bebidas atingiram grande notabilidade: o Vinho de Coca Mariani, produzido pelo médico corso que batizou com seu sobrenome a bebida e a Coca-Cola, do boticário norte-americano J. S. Pemberton, que a vendia para o combate à cefaléia e como tonificante. Com o advento da Lei Seca, Pemberton substituiu o álcool da fórmula por noz de cola (continente de cafeína), gaseificou a água e anunciou-a como “a bebida dos intelectuais e abstêmios” (Escohotado, 1996). Uma garrafa de 6 onças da bebida continha, em média, 2 miligramas de cocaína (Spillane, 1999). Em 1909, havia nos Estados Unidos 69 tipos de bebidas que continham cocaína em sua fórmula (Escohotado, 1996).
Entre 1880 e 1884 o Therapeutic Gazzette publicou 16 relatos de cura da dependência do ópio pela cocaína (Grinspoon et al, 1985). Mas foi a monografia de Sigmund Freud, Über Coca, em 1884, que sintetizou aquilo que vinha sendo falado e escrito pela comunidade científica nas últimas décadas. O trabalho do então desconhecido cientista, exaltava a capacidade da substância de exaltar o humor, combater o ‘morfinismo’ e o ‘alcoolismo’, transtornos gástricos, caquexia e a asma, além de ser afrodisíaco e anestésico local. Em artigos subseqüentes, considerou improvável a existência de uma dose letal para a substância e colocou suas experiências com a mesma no tratamento da histeria e hipocondria (Escohotado, 1996).
Dois laboratórios, Merck (1862) e Parke Davis (1870), passaram a comercializar a cocaína e dirigiram-na à classe médica na forma apresentações tais como extratos fluídos, vinhos, oleatos e salicilatos, inaladores, sprays nasais e cigarros contendo a cocaína em suas composições (Grinspoon et al, 1985; Johanson, 1988; Escohotado, 1996). Numa de suas campanhas, a Parke Davis publicou aos médicos: “Esperamos que seja mais freqüente a aplicação dos maravilhosos efeitos da cocaína na terapêutica geral, dos quais destacamos a melhora do estado de ânimo, o aumento das faculdades físicas e mentais, assim como o aumento da resistência ao esforço […] Seria uma lástima que tão destacadas propriedades não fossem exploradas” (Escohotado, 1996). Nessa época, o cultivo da planta foi levado para colônias inglesas, tais como Jamaica, Madagascar, Camarões, Índia, Ceilão (atual Sri Lanka) e especialmente Java (Grinspoon, 1985; Negrete, 1992).
A reação ao tratamento de panacéia dispensado à cocaína, embora presente desde o início do século XIX, só ganhou relevância no final desse (Spillane, 1999). Sintomas psicóticos e depressivos, insônia e relatos de abuso e dependência, onde o consumo era classificado por seus usuários como uma ‘tentação irresistível’ golpearam os elogios incondicionais que a substância vinha recebendo até aquele período (Escohotado, 1996). Por volta de 1890, pelo menos 400 casos agudos ou crônicos de danos físicos e psíquicos relacionados à cocaína já haviam sido publicados na literatura médica (Grinspoon et al, 1985). Em 1901 a Coca-Cola retirou a cocaína de sua fórmula (Karch, 1998). Emil Kraepelin (1902), durante uma conferência para clínicos da Universidade de Heidelberg, ao falar sobre a importância do papel do médico para “a prevenção e o alívio da interminável miséria causada pela doença mental”, apontou o alcoolismo, a sífilis e o abuso da morfina e da cocaína, como “os mais importantes pontos de ataque”. Por volta de 1905, o consumo inalado da cocaína já era bastante difundido nos E.U.A. e o primeiro caso de lesão da mucosa nasal foi publicado pela literatura médica em 1910 (Karch, 1998). As sociedades médicas, no início partidárias, e depois convertidas em ferozes opositoras da cocaína, passaram a criticar a venda da cocaína pela indústria farmacêutica, afirmando que esses haviam promovido a substância de uma maneira irresponsável e não-científica (Spillane, 1999) .
A partir da segunda década do século XX, observou-se um declínio no consumo da cocaína nos Estados Unidos e na Europa até atingir níveis insignificantes. Para tal, alguns fenômenos foram determinantes: o fortalecimento do puritanismo e da ideologia proibicionista nos Estados Unidos, culminado no aparecimento de leis restritivas e punitivas (Harrison Narcotics Act, 1914; Boggs Act, 1951; Narcotics Control Act, 1956), que baniram a cocaína e a heroína do mercado livre, controlaram as importações desses produtos, perseguiram os médicos que prescreviam tais substâncias e fecharam várias clínicas para tratamento de dependentes (Escohotado, 1996). A depressão econômica que se estendeu até os anos 40, deixando menos dinheiro para gastos supérfluos (Grinspoon et al, 1985). O surgimento, na Europa, de medidas socio-educativas e de saúde pública, visando à prevenção e ao tratamento desses pacientes (Escohotado, 1996). E por fim, a anfetamina, um novo e potente estimulante de longa duração, foi sintetizada em 1932. A substância não possuía qualquer restrição punitiva por parte dos estados nacionais, era barata e parece ter substituído o consumo de cocaína em alguma proporção (Johanson, 1988).
Alguns fatores são apontados como contribuintes para o recrudescimento do consumo de cocaína e heroína no início dos anos 70: o aparato repressivo montado pelo Estado norte-americano concentrava seus esforços no combate à maconha e ao LSD, permitindo que outras substâncias fossem introduzidas no país (Escohotado, 1996). A partir de 1973, o consumo de anfetamina passou a ser controlado, deixando um universo de consumidores carentes de uma substância com as mesmas propriedades (Johanson, 1988). Os movimentos contraculturais beat e hippie, dos anos 50 e 60, além de entenderem a experiência com substâncias psicoativas como uma forma percepção, contestação e saída do sistema autoritário em que viviam as nações da Guerra Fria (tune in, turn on and drop out), contribuíram para a modificação dos valores autoritários da classe média e para a aproximação com os setores marginalizados da sociedade (negros, homossexuais, loucos enclausurados e bandidos) (OSAP, 1991; Escohotado, 1996). Durante o seu ressurgimento, a cocaína era considerada uma ‘droga leve’, incapaz de causar sintomas de dependência física e por isso foi pouco visada num primeiro momento (OMS, 1975; OSAP, 1991). O narcotráfico colombiano se profissionalizou a partir dos anos 70 (Uprimny, 1997). Utilizando sua experiência anterior no contrabando de ouro e esmeraldas e aproveitando as conexões existentes para a distribuição da maconha, introduziu crescentes quantidades de cocaína em território norte-americano, aumentando a disponibilidade e reduzindo posteriormente o preço do produto (The Economist, 2001).
Desse modo, a cocaína se apresentou aos anos 80 como um estimulante relativamente inócuo e eminentemente urbano (Grinspoon et al, 1985). O alto custo inicial da substância, seu snob appeal e reputação de ‘droga das elites’ conferiram-lhe uma imagem de algo desejável (Grinspoon, 1985). O estilo de vida de uma nova geração, nascida durante os anos efervescentes do movimento hippie, mas ideologicamente oposta a esse, estava associado à cocaína : essa geração ficou conhecida como yuppies (young urban professionals) (American Heritage Dictionary, 2000). Jovens profissionais bem sucedidos e totalmente integrados ao sistema de produção vigente, possuíam empregos invejáveis e sob medida para workarolics e identificavam-se com os ícones do consumismo (Grinspoon, 1985). O consumo de cocaína inalada era visto como provedor de energia, auto-estima e ambição social, atributos essenciais para esses jovens executivos (Gold, 1993).
O consumo de cocaína atravessou os anos 80 popularizando-se. Atingiu extratos sociais mais baixos, faixas etárias cada vez menores (Escohotado, 1996) e preços mais acessíveis, chegando a custar 250% menos, no final da década (The Economist, 2001). O narcotráfico colombiano, responsável pela produção e distribuição da cocaína pelo mundo, atingiu níveis avançados de organização e notoriedade internacional (Shannon, 1991; Morganthau et al, 1991). No final dos anos 80, era responsável por 80% da cocaína distribuída nos Estados Unidos e faturava cerca de 200 bilhões de dólares anuais (Arbex, 1996). Nesse contexto de popularização, uma nova apresentação da substância surgiu em território norte-americano, após um período embrionário na América do Sul. Foi denominado crack e seu impacto sobre a cultura norte-americana e mundial gerou grande interesse por parte da mídia e da comunidade científica.
O hábito de fumar a pasta de folhas de coca era praticamente desconhecido na América do Sul antes dos anos 70 (Negrete, 1992). A partir dessa época, começou a ganhar popularidade no Peru, espalhando-se para os outros países produtores no decorrer da década (Maass et al, 1990). Nos Estados Unidos, o uso da pasta de coca foi descrito pela primeira vez em 1974, numa comunidade restrita da Califórnia (Wallace, 1991) e atingiu alguma popularidade no final da década (Siegel, 1987, Wallace, 1991; Morgan et al, 1997). A pasta básica de coca (sulfato de cocaína) é obtida por meio da maceração ou pulverização das folhas de coca com solvente (álcool, benzina, parafina ou querosene), ácido sulfúrico e carbonato de sódio (Maass et al, 1990; Escohotado, 1996). Desde os primeiros relatos, chamava a atenção dos pesquisadores a intensidade e a curta duração dos sintomas de euforia, seu preço muito inferior ao da cocaína refinada, as impurezas do amálgama e o ‘microtráfico’ feito pelo usuário para a manutenção do próprio consumo (Maass et al, 1990). A pasta básica era chamada nos países andinos de basuco, evocando a natureza da mistura (alcalina) e a potência de seus efeitos psicotrópicos (bazuca) (Negrete, 1985). Essa experiência, inicialmente restrita à América Andina, foi considerada por alguns autores como a precursora do surgimento do crack nos Estados Unidos (Hamid, 1991a; Ellenhorn et al, 1997; Reinarman, 1997).
O crack surgiu entre 1984 e 1985 nos bairros pobres de Los Angeles, Nova York e Miami, habitados principalmente por negros ou hispânicos e acometidos por altos índices de desemprego (Del Roio, 1997, Reinarman, 1997). Era obtido de um modo simples e passível de fabricação caseira (Ellenhorn et al, 1997) e utilizados em grupo, dentro de casas com graus variados de abandono e precariedade (crack houses) (Geter, 1994). Os cristais eram fumados em cachimbos e estralavam (cracking) quando expostos ao fogo, característica que lhes conferiu o nome (Ellenhorn et al, 1997). A utilização produzia uma euforia de grande magnitude e de curta duração, seguida de intensa fissura e desejo de repetir a dose (OSAP, 1991). O perfil inicial desses consumidores, eminentemente jovem, era o seguinte (Hamid, 1991b): usuários de cocaína refinada, atraídos inicialmente pelo baixo preço do crack, usuários de maconha e poliusuários, que adicionaram o crack ao seu padrão de consumo e aqueles que adotaram o crack como sua primeira substância. Juntaram-se a essa população, usuários endovenosos de cocaína, geralmente mais velhos, que após o advento da AIDS, optaram pelo crack em busca de vias de administração mais seguras, sem prejuízo na intensidade dos efeitos (Dunn et al, 1999b). O baixo preço da substância também atraiu novos consumidores, de estratos sociais mais baixos, que pagavam por dose consumida e por isso faziam inúmeras transações (Blumstein et al, 2000). No entanto, sua pureza, algumas vezes inferior, a curta duração dos efeitos e a compulsão por novas doses, por vezes produziam um gasto mensal superior ao efetuado com a cocaína refinada (Caulkins et al, 1997; Ferri, 1999).
O crack modificou profundamente a economia doméstica do tráfico drogas, bem como seu modo de atuação. Hamid (1991a, 1991b) relata que antes do aparecimento do crack em Nova Iorque, a distribuição de substâncias era feita por grupos de minorias étnicas culturalmente coesas, fazendo seus lucros circularem dentro daquela comunidade, na forma de bens e serviços. Com a chegada do crack e seu padrão compulsivo de uso, a busca por divisas voltou-se para a obtenção de mais substância, em detrimento da comunidade onde o comércio se dava. Além disso, um importante paradigma, a separação entre vendedor e consumidor, foi abandonado: os consumidores assumiram papeis na distribuição e muitos traficantes viram-se dependentes do crack. A partir daí surgiu um novo modo para a distribuição: atomizado e executado por jovens e suas gangues, porém fortemente organizado e hierarquizado, onde cada um exercia um papel específico.
O ambiente de violência e criminalidade pronunciado, pode ser explicado por alguns fatores. O novo negócio fomentou competitividade entre os grupos (Hamid, 1991a, Blumstein et al, 2000). Era comandado por adolescentes marginalizados e excluídos do mercado de trabalho, sem outra perspectiva econômica (Morgan et al, 1997; Blumstein et al, 2000), naturalmente mais imaturos e impulsivos e muitas vezes dependentes da substância (Hamid, 1991b, Blumstein et al, 2000). O comércio do crack causou deterioração e desestabilização econômica de bairros, onde as vendas se concentravam, associado à falta da presença do Estado como provedor de políticas sociais e de segurança, atuando exclusivamente como agente repressor e estigmatizador do tráfico e seus usuários (Hatsukami, 1996). O fácil acesso a armas de fogo cada vez mais poderosas (Hatsukami, 1996), fez dessas o principal meio para os membros das gangues garantirem autoproteção, resolverem as disputas de mercado, defenderem os produtos e ativos ilegais, além de lhes conferirem status e poder na comunidade onde atuavam (Blumstein et al, 2000). O caráter abusivo e compulsivo do consumo do crack, gerador de fissura e busca desenfreada por uma nova dose (Gossop et al, 1994; Hatsukami et al, 1996). A chegada do comércio do ilegal do crack catalisou e amplificou déficits sociais latentes, que apareceram sob a forma de comportamentos violentos, tais como venda de objetos pessoais, furtos, roubos, disputa de gangues, assassinatos e prostituição (Hamid, 1991a).
A presença do crack começou a ser relatada em outros países no final dos anos 80 (figura 1.1 e figura 1.2). A Espanha é tida a porta de entrada do tráfico de cocaína e haxixe na Europa (OGD, 2000). O país vem detectando a presença crescente da cocaína, principalmente na camada jovem da população (Bosch, 2000). O crack é mais prevalente na região sul do país (Sevilha), decrescendo, gradativamente, até alcançar as cidades do Norte (Barcelona) (Barrio et al, 1998). Portugal e França apresentam índices insignificantes de consumo de cocaína, em termos de saúde pública, além de não fazerem menções sobre o crack (EMCDDA, 1999). A Itália (EMCDDA, 2000) detectou a presença do crack entre minorias de imigrantes (senegaleses), envolvidos no mercado do tráfico e habitando áreas marginalizadas. O consumo, restrito às minorias imigrantes, apresentou algum aumento entre os italianos. No Reino Unido, o crack surgiu em bairros pobres e marginalizados, habitado por minorias de imigrantes, causando disputas de espaço pela distribuição e criminalidade (Bean, 1993; Ditton, 1993; Pearson, 1993, Shapiro, 1993). A substância era relativamente conhecida pelo público jovem (Denham, 1995) e passou a ser utilizada por boa parte dos antigos usuários de cocaína (Strang et al, 1990), com predomínio maior entre os negros caribenhos (Gossop et al, 1994). Recentemente, a imprensa (Police crack down…, 2001) noticiou um aumento do consumo. A Alemanha (EMCDDA, 2000) observou a chegada do crack a partir da primeira metade dos anos 90. Produzido artesanalmente e para consumo próprio, no início, o crack é hoje mais prevalente que a cocaína naquele país, com grande penetrância entre os usuários de heroína. A Holanda parece não ter sentido a presença do crack até 1993 (Cohen, 1997), permanecendo restrito a minorias de imigrantes do Suriname (Cohen, 1995). Em 1998 o consumo de cocaína não-injetável (cocaína refinada e crack) era considerado tão prevalente quanto de heroína (Ameijden et al, 2001). Os países escandinavos (EMCDDA, 1999) têm grande predileção pelas anfetaminas, a substância mais consumida naqueles países, após a maconha (1-3%). Não há relatos sobre o crack nesses países.
Figura 1.1 – Prevalência do consumo mundial de cocaína, países produtores e principais rotas de tráfico Fonte: UNODCCP. Global Illicit Drug Trends; 2001.
Um padrão insignificante de consumo de cocaína foi observado nos países do Leste Europeu, sem referências à presença do crack (UNODCCP, 2001).
Na Austrália, o crack parece ter causado pouca ou nenhuma repercussão (Mugford, 1997). O consumo de cocaína, no entanto, vem aumentando desde o início dos anos 90, apesar dos baixos índices (1,4%). Já nos países asiáticos, tais como Japão, China e Filipinas o consumo de estimulantes se dá preferencialmente com as anfetaminas, não havendo espaço para congêneres (NIDA, 1999; NIDA, 2001). Algum sinal do crack e drogas sintéticas (club drugs) tem sido detectado na Índia, em substituição ao consumo local de mandrax (OGD, 2000). A África do Sul é o maior mercado consumidor de cocaína do continente africano (OGD, 2000). Começou a sentir a presença do crack por volta de 1993, com índices crescentes de consumo, principalmente nas zonas miseráveis de Joanesburgo (Jeter, 2000). Os últimos relatos, no entanto, apontam para a estabilização ou mesmo redução do consumo nesse país (NIDA, 2001).
Figura 1.2 – Comportamento do consumo mundial de cocaína em 1999 Fonte: UNODCCP. Global Illicit Drug Trends; 2001.
Há poucas informações sobre a chegada do crack ao Brasil, em sua maioria provenientes da imprensa leiga ou de órgãos policiais. A apreensão de crack, realizada pela Polícia Federal, entre 1993-1997, aumentou 166 vezes (Procópio, 1999). A apreensão de pasta básica, no mesmo período e considerada por região, apresentou níveis decrescentes, excetuando-se a região sudeste, onde aumentou 5,2 vezes (Procópio, 1999). A cidade de São Paulo foi a mais atingida. A primeira apreensão da substância no município registrada nos arquivos da Divisão de Investigações sobre Entorpecentes (DISE), aconteceu em 1990 (Uchôa, 1996). Algumas evidências apontam para o surgimento da substância em bairros da Zona Leste da cidade (São Mateus, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista), para em seguida alcançar a região da Estação da Luz (conhecida como “Cracolândia”), no centro (Uchôa, 1996). A partir daí espalhou-se para vários pontos da cidade, estimulado pelo ambiente de exclusão social (Uchôa, 1996) e pela repressão policial no centro da cidade (Dimenstein, 1999). O preço do crack, apesar de similar ao da cocaína refinada em termos de unidade de peso, possuía apresentações para o varejo que variavam de 1,00 a 50,00 reais, tornando-o acessível para uma faixa grande de consumidores (Dunn et al, 1998). Além disso, parece ter havido uma redução na oferta de outras drogas (Nappo et al, 1994). Procópio (1999), a partir de uma revisão em jornais de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, apresentou algumas considerações sobre o esquema de distribuição. Entre essas, figuram a ascensão de indivíduos cada vez mais jovens ao comando do tráfico, fragmentado e organizado em bandos (gangues), com divisão de tarefas (“dono da bocada”, “chefe da distribuição”, “avião”, “fogueteiro”) e normas rígidas de disciplina e punição, com alta prevalência de armas de fogo, caracterizando uma conduta marcadamente violenta, em decorrência da competição por espaço na distribuição e para fazer frente ao esquema de repressão ao tráfico. Apesar de desenhado a partir de dados parciais e em sua maioria sem sistematização científica, o panorama observado guarda semelhanças com a presença do crack em outros países.
Não há informações amplas sobre a evolução do consumo de crack no Brasil. Um importante fenômeno observado aqui (Dunn et al, 1996; Dunn et al, 1999b) e em outros países (Gossop et al, 1994; Barrio et al, 1998; Ameijden et al, 2001), durante os anos 90, foi a transição de vias de administração entre os usuários de cocaína. Tal fenômeno caracteriza-se pela substituição da via de administração, por meio da qual um indivíduo se iniciou no consumo de alguma substância, por uma nova via, que passa a ter sua predileção (Dunn et al, 1999b). Quanto às drogas injetáveis no Brasil, cocaína é praticamente a única substância utilizada (Carvalho et al, 2000; Seibel et al, 2000), tendo em vista a presença irrelevante de heroína no país (Dunn et al, 1999b; Carvalho et al, 2000). Até o final dos anos 80 o padrão inicial de consumo de cocaína era feito principalmente pela via intranasal e em menor proporção, pela via injetável (Dunn et al, 1999b). Nos países europeus, o consumo inicial de heroína dava-se principalmente pela via injetável (Gossop et al, 1994; Barrio et al, 1998; Ameijden et al, 2001). Após esse período, verificou-se um aumento daqueles que iniciavam seu consumo pela forma inalatória, em detrimento da injetável (Gossop et al, 1994; Dunn et al, 1999b, Kuebler, 2000; Ameijden et al, 2001). Uma porção dos usuários que utilizavam as vias injetável e intranasal migraram para a via inalatória, ao passo que essa foi a que menos perdeu adeptos (Dunn et al, 1999b). Alguns fatores influenciaram essa transformação: a severidade e o tempo prolongado de consumo de cocaína, o baixo preço e a disponibilidade do crack e a percepção crescente dos riscos associados ao modo injetável (HIV) (Dunn et al, 1999b).
Nos últimos anos, instituições ligadas à infância e a imprensa vêm notando uma redução do consumo em São Paulo (Dimenstein, 2000). Notícias sobre as apreensões de substâncias psicoativas pela polícia, mostraram um aumento expressivo das apreensões de maconha (507%) e discreto com relação à cocaína e crack (10%) (Apreensão de maconha…, 2001; Maconha, cocaína…, 20001). Os mesmos artigos também observaram a redução da procura por tratamento na rede pública municipal entre esses indivíduos. Tais informações, apesar de sugerirem uma diminuição do consumo devem ser analisadas com cautela: a redução nas apreensões policiais pode tanto significar uma queda do consumo, como também decorrer do surgimento de esquemas mais protegidos de tráfico, adaptados ao esquema de repressão, inclusive por meio da corrupção desse (Bean et al, 1993). A queda na procura por atendimento pode ser resultado de um redirecionamento da demanda para outras opções de tratamento. Dessa forma, o consumo do crack vem apresentando comportamentos de queda e ascensão em diversos países (figura 1.2), com desdobramentos futuros ainda incertos.