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Em uma percepção ainda empírica, não científica, profissionais de saúde envolvidos com importantes programas e estudos sobre álcool têm observado um aumento considerável no consumo “doméstico” de bebida durante o confinamento. Eles não se referem apenas a recaídas de pessoas com histórico de alcoolismo, mas também à quantidade ingerida pelos que bebem “só uma cervejinha”, “um vinhozinho”, socialmente……
Mais uma dose O argumento usado para tomar mais uma dose é a desolação causada pela pandemia de covid-19. Além do medo evidente do contágio da doença, existe a ameaça permanente de crise econômica, falência financeira e desemprego. A bebida serviria para aplacar angústias, estresse, ansiedade e depressão.
A partir disso, há alguns fatores a considerar. Segundo o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, supervisor do programa de estudo de álcool e drogas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), “o confinamento levou muitas pessoas a uma mudança de padrão no consumo de álcool”. “Aumentou a frequência e a quantidade”, observa.
Fim do expediente?
Guerra cita os indivíduos que agora trabalham em casa, em regime de home-office: “Eu tenho visto que a alteração da rotina fez com que muitas pessoas passassem a beber ‘fora de hora’. O happy hour foi ‘adiantado’. Aquela cerveja do fim do expediente é aberta na hora do almoço. E seguida por várias outras”, diz o médico, que é presidente do Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool). Ele explica que, no caso da pessoa que já é dependente da bebida, a quarentena pode servir de desculpa para recair no vício. “O paciente argumenta: ‘Mas doutor, não sou só eu, tá todo mundo bebendo mais!'” Porém, diz Guerra, “quem tem consciência de que, se começar, vai repetir o mesmo filme, não dá o primeiro gole”.
Reuniões à distância A psicóloga Camila Ribeiro de Sene, presidente da Junta Nacional de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos, tem registrado de um a dois novos acessos ao site, pelo e-mail de busca de ajuda. O A.A. reúne grupos de homens e mulheres que compartilham experiências e se ajudam na recuperação do alcoolismo. Em março, pela primeira vez em 70 anos, a irmandade passou a promover reuniões à distância. Camila diz que, apesar de a maior parte da população do grupo (25%) estar na faixa etária dos 51 aos 60 anos (uma geração que supostamente não teve tanto acesso à tecnologia), “é muito bom ver como essas pessoas se sentem gratas por vivenciar uma experiência tão diferente .
Ela cita um dos principais lemas da irmandade, “Vamos viver o dia de hoje”, para mostrar que o A.A. está em consonância com o momento delicado que o mundo atravessa: “O desenvolvimento do senso de coletividade é a nossa característica mais marcante.”
Desde que… Para a aposentada Maria, 65, que frequenta as reuniões do A.A. desde 1988 e considera sua doença “estacionada” (não bebe mais), a pandemia se impôs como um grande desafio para todos, um teste de adaptação e perseverança. Ela diz que é possível ultrapassá-la bem, desde que haja o suporte de uma filosofia, uma religião, uma política de acolhimento do governo.
“O programa do A.A. me ajudou a reconstruir minha vida após a devastação do alcoolismo, e agora continuo aplicando os mesmos princípios em todas as atividades.”
Venda controlada Em abril, a OMS (Organização Mundial de Saúde) divulgou uma nota em que sugere que os estados-membros limitem a venda de bebidas alcoólicas durante a pandemia, controlem seu acesso por menores em supermercados (incluindo o delivery) e proíbam a publicidade.
A entidade alega que o álcool reduz a imunidade do organismo, podendo facilitar o contágio do Sars-CoV-2 (novo coronavírus), e cita o aumento de casos de violência doméstica causado pelo abuso de bebida durante o confinamento. Fala ainda em agravamento de transtornos da saúde física e mental.
“Aparentemente, o governo brasileiro ignorou a sugestão”, diz a professora Zila Sanchez, do departamento de medicina preventiva da Unifesp (Escola Paulista de Medicina). Consultado, o ministério da Saúde não se manifestou sobre a nota.
Adaptação cerebral
Zila acaba de participar de um estudo em conjunto com representantes de outros países, que abordou justamente o apelo do álcool em momentos de tensão como o da pandemia. “A história nos mostra que situações traumáticas como guerras, tsunamis, atentados são acompanhadas de aumento no consumo de álcool.”.
Segundo a professora, “o álcool é o que está mais à mão para aliviar o sofrimento”. “Acontece que os neurônios se adaptam à quantidade que bebemos. O que a gente acha que é só um hábito em um momento de exceção, ao fim do confinamento pode virar físico. O cérebro estará biologicamente acostumado, e vai sentir falta.”
Férias obrigadas
A psiquiatra Alessandra Diehl verificou em seu atendimento clínico que “muitas pessoas associam a quarentena a ‘férias obrigadas’, e se dão o direito de beber”. Ela é uma dos 560 profissionais de saúde da Abead (Associação Brasileira do Estudo do Álcool e outras Drogas), uma sociedade científica com 41 anos de existência.
Segundo Alessandra, “todos os colegas têm relatado aumento no consumo de álcool pelos pacientes”. “Homens e mulheres, em igual quantidade.” Por mais que o “consumidor de quarentena” acredite que a qualquer hora pode “voltar ao padrão anterior” de ingestão alcoólica, Alessandra explica que “há uma chance grande de o uso se tornar nocivo e evoluir para a dependência, sem que se perceba”. “A pessoa pode até dizer que é só durante o confinamento, mas alguém sabe dizer quanto tempo o confinamento vai durar?”
Fonte: Paulo Sampaio – UOL