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Alcoólatra, eu?! Vinte milhões de brasileiros são dependentes do álcool. Veja como identificar a doença e proteger sua carreira Por Daniela de Lacerda e Maurício Oliveira Ironia das ironias.
Pautada para escrever uma matéria sobre alcoolismo, editora da VOCÊ S/A almoça com um colega de trabalho na Vila Madalena, simpático bairro da zona oeste de São Paulo, e pede um bom vinho tinto para acompanhar a massa.
Um brinde! E a pergunta que não quer calar: será que a moça é alcoólatra? Bebendo no intervalo do almoço? Com várias e várias páginas para escrever durante a tarde?
Huummmm… Por incrível que pareça, a resposta a essa questão não é assim tão simples.
É claro que a jornalista — que assina esta reportagem — não pode ser considerada dependente de álcool simplesmente porque pediu um vinhozinho no almoço. Nem mesmo se tivesse entornado a garrafa inteira. Mas se:
:: essa cena se repete freqüentemente;
:: ela gasta boa parte do tempo com a bebida ou se recuperando de seus efeitos;
:: sempre pede uma tacinha a mais do que planejou;
:: precisa beber cada vez mais para sentir a ação do álcool no organismo;
:: enfrenta problemas pessoais ou profissionais por causa de seus hábitos etílicos;
:: gostaria de beber menos e já viveu situações de risco sob o feito do seu adorado vinho (como dirigir, por exemplo)
… Aí, sim, a moça pode ser chamada de alcoólica, alcoólatra, alcoolista –ou qualquer outro sinônimo para quem não consegue viver sem beber. E se você se identifica com pelo menos dois dos hábitos acima deve ficar alerta, porque já se enquadra no perfil de dependentes (veja o quadro Hora de Parar).
Cerca de 75% das pessoas que bebem podem suspirar aliviadas, porque elas não fazem parte desse grupo nem são potenciais candidatas. Podem até encher a cara uma vez ou outra, mas têm uma relação tranqüila com o álcool. As demais se dividem entre os bebedores-problema e os alcoolistas. Está no primeiro time aquele profissional para quem o álcool tornou-se um parceiro fiel, um amigo íntimo.
É o cara que chega na festa e vai logo procurando o bar. Começa a segunda-feira atormentado pela ressaca. Às vezes bebe e fica agressivo (verbal ou fisicamente). Ou bebe e bate o carro.
Os amigos e a família chamam a atenção para a quantidade e a freqüência com que ele vira uns copos. A vida começa a ser programada em função de seus drinques. Mas ele acha que está tudo sob controle.
O próximo passo pode ser a dependência. Mais de 20 milhões de brasileiros (11,2% da população) enfrentam esse problema. “Nessa fase, você vira escravo do álcool”, afirma o psiquiatra Arthur Guerra, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e presidente executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).
“Acorda de madrugada trêmulo e precisa beber para melhorar. Troca de roupa, vai para a porta do bar ou da padaria e espera abrir. Às vezes não consegue nem pôr o primeiro gole na boca. Alguém tem de ajudar.”
Isso acontece sempre que o nível de álcool no sangue diminui. O cirurgião não consegue operar sem tomar uns goles antes. O executivo não é capaz nem de assinar seu nome. Não é à toa que os alcoólicos costumam ter bebidas escondidas no local de trabalho.
O álcool ou o emprego
Tanto o bebedor-problema quanto o alcoólatra começaram a beber ocasionalmente, no happy hour e na balada com os amigos. Ou em eventos profissionais, para acompanhar o chefe e o cliente. Quem sabe em casa, para relaxar depois do expediente, reproduzindo aquela clássica cena de cinema em que o executivo marcha direto da porta para o bar, afrouxa o nó da gravata e se serve de uma boa dose de uísque.
Eles nem perceberam quando o filme passou para a categoria tragédia. Mas talvez tivessem conseguido mudar o roteiro se soubessem o que hoje a gente sabe, e agora você também vai saber, sobre o consumo de bebidas alcoólicas.
Já que você está lendo a VOCÊ S/A, vamos começar falando da sua carreira. No Brasil, o alcoolismo é o terceiro motivo para faltas ao trabalho.
E não é difícil imaginar que, por essa e outras razões, os profissionais que bebem além da conta correm um grande risco de acabar no olho da rua. Além de faltar ou chegar atrasados, alguns deles saem mais cedo para beber ou fazem isso durante o expediente.
Têm dificuldades para concluir tarefas. Às vezes ficam agressivos com os colegas. Passam a produzir menos. E, dependendo da área de atuação, ainda representam um risco para eles próprios e para os outros, já que o alcoolismo é a causa mais freqüente de acidentes no trabalho.
“Dá para enganar por algum tempo, mas a máscara termina caindo”, afirma a psiquiatra Magda Vaissman, autora de Alcoolismo no Trabalho (Editora Fiocruz) e pesquisadora do Programa de Ensino e Assistência ao Uso Indevido de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Se a carreira sofre, a saúde mais ainda. Com o passar do tempo, quem bebe muito e com regularidade vai acabar sentindo as conseqüências no organismo. Um dos órgãos mais afetados é o cérebro. O raciocínio fica mais lento, há flutuações de humor, falhas de memória e de orientação espacial. Isso pode evoluir para quadros irreversíveis, em que várias funções do cérebro são comprometidas. O fígado é outro que sofre com o álcool e uma das conseqüências mais graves é a cirrose, doença progressiva e fatal.
A bebida também afeta o coração. Você pode sofrer um infarto e morrer sem que seu médico sequer saiba que o que levou a isso foi a bebida. Há estudos, ainda, que associam o consumo de álcool à incidência de câncer. A lista de tragédias poderia continuar por vários e vários parágrafos, mas a gente acha que já lhe assustou o suficiente e quer que você continue lendo. Portanto, vamos lá…
Profissionais em Risco
No trabalho, há alguns fatores que contribuem para o alcoolismo. Geralmente os profissionais que mais buscam suporte na bebida são aqueles que se sentem desprestigiados ou desqualificados, que trabalham em situações de grande isolamento social (em uma plataforma de petróleo, por exemplo) ou que vivem sob grande estresse. Se a esse cenário somam-se problemas pessoais e um empurrãozinho genético, a situação se complica.
Você deve ter um amigo que bebe uma tulipa de cerveja e já começa a rir diferente, enquanto outro vira uma grade e parece que está pronto para mais uma. Isso depende da maneira como cada um reage ao álcool e aí entra em cena a influência genética. Entre um tipo e outro, quem mais deve se preocupar com a possibilidade de se tornar dependente de álcool é aquele que entorna todas e mal parece ter bebido.
Com o tempo, ele vai precisar consumir cada vez mais álcool para conseguir algum efeito. E quando se der conta pode ter se tornado um alcoolista.
Se é você quem se encaixa nesse perfil, e não o amigo do amigo, corte aquele papo de que o álcool nunca foi um problema, consulte um grupo de apoio como os Alcoólicos Anônimos e, de preferência, um psiquiatra. Ele não vai lhe colocar numa camisa-de-força se você não parar de beber. Mas pode ajudá-lo a entender de onde vem essa relação tão íntima com o álcool, e a partir daí sugerir uma forma de lidar com a bebida de uma maneira menos suicida. Cerca de 70% dos casos de alcoolismo estão associados a um problema mental, como depressão ou fobia social.
O diagnóstico desses distúrbios é fundamental para o sucesso do tratamento, que geralmente começa com uma fase de desintoxicação. Durante o processo, costumam ser receitados remédios que diminuem o desejo de beber. “O sonho dos alcoólicos é encontrar um medicamento que cure o alcoolismo, mas isso ainda não existe. Por enquanto, a solução é mesmo o auto-controle”, afirma a psiquiatra Magda Vaissman, da UFRJ. Se forem identificados problemas físicos, o plano de recuperação também vai levar isso em consideração. Seja qual for o caso, uma regra é certa: é preciso largar a bebida para sempre.
“Alguns alcoólicos conseguem voltar a beber socialmente, mas isso é muito, muito raro”, afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que atende cerca de 100 pacientes por mês com problemas ligados ao álcool. Antes que o alcoólatra consiga parar de beber de vez, no entanto, são comuns as recaídas. E é importante que ele saiba disso. “Algumas pessoas consideram isso um fracasso. Mas é apenas uma etapa durante o processo de recuperação”, enfatiza o psiquiatra.
Os três primeiros meses costumam ser os mais difíceis: nessa fase, o índice de recaída é de aproximadamente 70%. Por mais difícil que seja o tratamento, raramente se opta pela internação do paciente se o diagnóstico é apenas alcoolismo. “A pessoa precisa aceitar o problema e estar disposta a mudar”, diz o psiquiatra Arthur Guerra, da USP. “Caso contrário, passa seis meses internada e quando sai vai beber para comemorar a alta.”
Quem não resiste
O perfil dos dependentes de álcool no país*:
* 11,2% da população é dependente de álcool;
* 5,2% dos brasileiros fazem uso regular de bebidas alcoólicas — bebem, no mínimo, de 3 a 4 vezes por semana;
* o número de dependentes homens é 3 vezes maior do que o de mulheres.
“Não é fácil largar o vício”
O paulista R. T. jogava futebol com os amigos três vezes por semana e, quase sempre, a pelada terminava em uma mesa abastecida com muita cerveja. Aos 35 anos, ele achava que tinha uma ótima relação com a bebida. Numa das partidas lesionou seriamente o joelho e teve de passar por uma cirurgia. Com isso, afastou-se do convívio com a turma — mas não do álcool. Habituado a beber com freqüência, R. T. passou a escapar no meio do expediente para tomar uma ou duas doses de uísque, caipirinha ou conhaque.
“Era uma fase em que precisava liderar reuniões com dezenas de promotores de vendas e ficava muito nervoso com essa responsabilidade”, lembra R.T., que ocupava o cargo de gerente de vendas em uma empresa com 800 funcionários, sediada em São Paulo. “Passei a depender do álcool para criar coragem.” Embora tentasse disfarçar com balas de hortelã, todos ao redor notavam o cheiro de bebida com que ele ia trabalhar.
R.T. não achava que seu rendimento estava caindo, mas passou por situações bem constrangedoras por causa do álcool. Em particular uma reunião em que a gerente de marketing exclamou na frente de todo mundo: “Mas que cheiro de uísque!”. Há cinco anos, R.T. foi demitido. “A empresa percebeu que eu estava doente, mas não tentou me ajudar. Quando me mandaram embora, disseram ironicamente que a razão era o meu alto grau etílico.” Depois de muitas tentativas de salvar o casamento por parte da ex-mulher, ele se separou há três anos, deixando de conviver diariamente com a filha, hoje com 17 anos.
Foi esse baque que o fez buscar tratamento.
R.T. procurou o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), da Unifesp. Além de alcoólatra, ele foi diagnosticado como portador de fobia social.
Está em tratamento e ainda não parou de beber, mas conseguiu reduzir o consumo. “Foi a minha salvação. Se não tivesse feito isso, provavelmente estaria morando na rua.” Aos 44 anos, ele tenta se reerguer trabalhando como representante comercial autônomo, com rendimento três vezes menor do que em seu último emprego com carteira assinada.
“Não é fácil sair do vício, porque você se sente sozinho. Os amigos e os colegas de trabalho, que sempre chamavam para o happy hour, somem.
A sociedade é hipócrita. Conduz as pessoas para o álcool e depois as abandona.”
Hora de parar
Confira os sintomas mais freqüentes entre os dependentes*:
* 14,5% quiseram diminuir ou parar o uso de álcool;
* 9,4% usaram álcool mais freqüentemente ou em quantidades maiores do que pretendiam;
* 7,1% tiveram algum problema pessoal pelo uso do álcool;
* 6,2% estiveram em situações de risco físico sob efeito do álcool ou logo após o seu efeito;
* 5,8% precisaram de mais quantidade de álcool para produzir os mesmos efeitos;
* 4,4% gastaram grande parte do tempo para conseguir álcool, usá-lo ou recobrar-se dos efeitos.
Fonte: Fonte: 1º Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil 2002
Matéria Publicada em 05/06/2006 pela Revista Você S/A
Por Daniela de Lacerda e Maurício Oliveira