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O uso de bebidas alcoólicas na América Latina é realidade bastante presente e fonte de atenção de especialistas e autoridades.
Seja pelo uso em festas e celebrações populares quanto pelo impacto na saúde pública, esse fenômeno se faz notar fomentando debate intenso e, por vezes, controverso.
Dessa maneira, é de vital importância que o assunto seja encarado de forma séria e baseado em evidências, deixando de lado visões apaixonadas e distantes da realidade latino-americana a fim de que políticas eficazes de saúde pública sejam postas em prática.
1) Consumo de álcool e impacto à saúde na América Latina
Em termos gerais, há na América Latina uma carência de dados epidemiológicos integrados e de grande abrangência sobre o uso de bebidas alcoólicas pela população. Entretanto, vale salientar que há uma série de estudos feitos em países latino-americanos, os quais criam uma espécie de “mosaico” de conhecimento da questão.
Atentos à essa questão, Rehm & Monteiro1 avaliaram o consumo de álcool nas Américas (América do Sul, América Central, América Insular e América do Norte), seu impacto na saúde em termos de doenças relacionadas ao uso de álcool e suas implicações para as políticas públicas de saúde. Os dados citados pelos autores são do ano 2000 e têm como fonte a Organização Mundial de Saúde.
O consumo de álcool foi avaliado em termos de dimensões: volume médio de álcool consumido e padrão de consumo (com episódios de uso pesado de álcool e de embriaguez). O consumo de álcool por habitante na Américas no ano 2000 variou de 16,3 litros na Argentina para 2,4 litros em Trinidad e Tobago, com países como o Brasil, a Venezuela e o México acusando, respectivamente, 8,6 litros, 9,6 litros e 8,2 litros.
A média de consumo de álcool por habitante nas Américas (incluindo EUA e Canadá) ficou em 8,9 litros, significativamente acima da média mundial de 5,8 litros. Todos os países acusaram consumo significativo na forma de uso pesado de álcool (ingestão de 5 ou mais doses de álcool por ocasião para homens e 4 ou mais doses para mulheres).
Os autores classificaram os padrões de consumo de álcool em 4 categorias, montando um espectro que vai de (1), como sendo o uso regular de álcool associado com refeições, desprovido de uso pesado dessa substância e com impacto pequeno sobre a saúde e mortalidade até (4), como sendo o uso de álcool com episódios freqüentes de uso pesado e associado à impactos consideráveis sobre a saúde e mortalidade. Ou seja, o uso mais deletério dessa substância. Cuba obteve o escore 2,0, ao passo que países como o Brasil, México, Bolívia e Peru obtiveram o 3,1. Vale destacar que a média mundial é de 2,5. O uso de álcool esteve associado com 4,8% de todas as mortes ocorridas na região pan-americana, com destaque para a América do Sul e Central e insular. Os acidentes foram os principais responsáveis pela mortalidade associada ao uso de álcool. Essa média é superior à média mundial que é de 3,2%. Observou-se também que tanto a mortalidade quanto os acidentes associados ao uso de álcool foram predominantes no sexo masculino e em pessoas abaixo de 45 anos.
1.1) Indicadores de consumo no Brasil
1.1a) Levantamentos populacionais gerais
Em Galduróz & Caetano2, os autores buscaram traçar o panorama do consumo de álcool no país por meio da análise dos levantamentos populacionais (pesquisas domiciliares, uso de álcool entre estudantes, uso de álcool por meninos de rua) e indicadores estatísticos (internações hospitalares por dependência do álcool, dados do Instituto Médico Legal, acidentes de trânsito relacionados e informações de vendas de bebidas alcoólicas). Vale destaque para o I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas, realizado no ano de 2001. O estudo contou com amostra de 8599 sujeitos residentes nas 107 capitais brasileiras com mais de 200 mil habitantes. Houve menção ao uso de álcool na vida por 68,7% da população investigada. A prevalência de dependência de álcool na população geral foi de 11,2%, sendo 17,1% para o sexo masculino e 5,7% para o feminino. Desse modo, os autores concluem que o uso de álcool contribui fortemente na etiologia e manutenção de vários problemas sociais, econômicos e de saúde enfrentados no Brasil.
1.1b) Levantamentos populacionais com estudantes de ensino fundamental e médio
Os autores fazem menção a estudos realizados nos anos de 1987, 1989, 1993 e 1997 com estudantes de ensino fundamental e ensino médio de escolas públicas de 10 capitais brasileiras2. Constatou-se nesses levantamentos que a cerveja foi a bebida mais consumida, com cerca de 70% dos estudantes fazendo menção ao seu uso. A comparação desses levantamentos com estudantes permite concluir que o uso na vida de álcool se manteve estável, ao passo que o uso pesado (definido como sendo o uso de 20 vezes ou mais de álcool no mês anterior a pesquisa) aumentou na maioria das cidades investigadas.
1.1c) Levantamentos populacionais com estudantes de ensino superior
Stempliuk e colegas3 compararam a prevalência do uso de álcool entre estudantes da Universidade de São Paulo em uma amostra aleatória selecionada de 3590 alunos de graduação nos anos de 1996 e 2001. Os autores observaram aumento no uso de álcool no período em questão, com 88,5% e 91,9% dos entrevistados relatando já ter feito uso na vida de bebidas alcoólicas nos anos de 1996 e 2001, respectivamente.
1.1d) Levantamentos populacionais na cidade de São Paulo
Silveira e colegas4 investigaram o consumo de bebidas alcoólicas em uma amostra de 1.464 pessoas residentes dos bairros de Vila Madalena e Jardim América. Os autores observaram que o beber pesado (5 ou mais doses de álcool por ocasião para homens e 4 ou mais doses de álcool para mulheres) se mostrou um padrão de consumo comum nesta amostra, com 10.7% dos entrevistados fazendo menção ao uso pesado do álcool, sendo 15.4% homens e 7.2% mulheres. Entre os homens, o risco de beber pesado esteve aumentado para aqueles entre 18 e 24 anos de idade (1 a cada 3 homens nesta faixa etária bebe neste padrão). Ademais, o beber pesado se concentrou entre os mais jovens (18 a 24 anos), os quais se mostraram mais expostos a riscos (violência, acidentes de trânsito, faltas ao trabalho). Além disto, as maiores taxas de beber pesado em homens foram observadas entre os homens que nunca se casaram (2.3 vezes mais do que os casados), estudantes (23.3%) e de baixa renda (2 vezes mais do que em indivíduos de alta renda). No caso das mulheres, notou-se que as aquelas entre 18 e 44 anos de idade e as que não eram casadas, ou seja, separadas, divorciadas, viúvas ou solteiras, foram as que mais fizeram uso do álcool neste padrão.
1.2) Indicadores de consumo no México
Slone e colegas5 investigaram o uso de álcool em três cidades mexicanas (Guadalajara, Hermosilla e Mérida), contando com uma amostra de 1933 sujeitos. Os autores dividiram a amostra em 3 grupos: abstinente (uso de menos de 12 doses de álcool na vida), bebedor sem problemas (12 ou mais doses na vida sem evidência de abuso ou dependência) e bebedor problemático (12 ou mais doses na vida com ao menos 1 sintoma de abuso e dependência segundo o DSM-IV). Do total de sujeitos inicialmente entrevistados, 902 foram classificados como abstinentes, 452 como bebedores sem problemas relacionados ao uso e 577 como bebedores problemáticos. Os autores constataram que na referida amostra o uso de álcool foi mais prevalente entre os homens (77%) em comparação com as mulheres (34%). Os homens de maior poder aquisitivo e os homens casados relataram consumir mais álcool do que aqueles com menor poder aquisitivo e solteiros, respectivamente, ao passo que baixo poder aquisitivo esteve associado com abstinência. Observou-se também que o uso indevido de álcool esteve associado com histórico de vivência de experiências traumáticas e estressantes na vida.
1.3) Indicadores de consumo na Argentina
No ano de 2002 foram selecionadas 1000 pessoas de 18 a 65 anos, residentes na província de Buenos Aires, a fim de que fosse avaliado o padrão de consumo de álcool nessa amostra6. Do total de sujeitos entrevistados, 47,7% eram homens e 52,3% eram mulheres. Vale salientar que o estudo foi realizado após a recente crise econômica na Argentina, tendo como conseqüência 18% da amostra estando desempregada na época da entrevista. A Argentina é tradicionalmente, em termos mundiais, um dos maiores produtores per capita de vinho, com produção mediana de destilados e baixa de cerveja. Contudo, nas últimas duas décadas o consumo de vinho caiu mais da metade e o consumo de cerveja aumentou de maneira dramática, com respectivo aumento na percepção de problemas relacionados ao álcool. Segundo dados do primeiro estudo epidemiológico sobre o uso de substâncias psicoativas na Argentina, o índice de consumo abusivo de álcool atingiu a cifra de 13,2% e de dependência foi de 4,3% da população7. Os pesquisadores constataram que o uso de álcool estava bastante disseminado na amostra investigada: 84,5% dos entrevistados fizeram uso de álcool nos últimos 12 meses. Metade da amostra fazia uso de álcool ao menos 1 vez por mês; 36% dos entrevistados faziam uso de bebidas ao menos 1 vez por semana. Observou-se também que o uso pesado de álcool (5 ou mais doses de álcool por ocasião) esteve mais associado com jovens de 18-29 anos para ambos os sexos. Os maiores números de abstêmios de acordo com o sexo foram encontrados entre os homens de 45 anos ou mais e entre as mulheres de 30-44 anos. Por fim, os autores notaram que tanto entre homens quanto entre mulheres, o grupo de bebedores freqüentes de álcool foi aquele que apresentou o melhor nível de escolaridade, ao passo que os homens desempregados da amostra estiveram associados com o uso pesado de álcool.
2) Políticas públicas do álcool nas Américas
2.1) Primeira Conferência Pan-Americana sobre políticas públicas do álcool
A prevenção dos problemas relacionados ao uso de álcool é um dos maiores desafios da saúde pública. No ano de 2005, em Brasília (capital do Brasil), 110 especialistas de 27 países das Américas se reuniram a fim de discutir a implementação de políticas públicas sobre o álcool8. Diversos aspectos foram abordados, com destaque para: o impacto do uso de álcool nos países da região, álcool, jovens e propaganda, álcool, sexo e cultura, álcool e população indígena, álcool e violência, álcool e segurança no trânsito e álcool e implementação de políticas públicas sobre o álcool. No fim no evento, os participantes aprovaram por consenso a Declaração de Brasília sobre Políticas Públicas do Álcool contendo 6 recomendações:
– A prevenção dos problemas relacionados ao uso de álcool deve ser prioridade de saúde pública em todos os países das Américas;
– Estratégias regionais e nacionais sobre a questão precisam ser desenvolvidas, incorporando abordagens baseadas em evidências culturalmente apropriadas que busquem a redução dos danos relacionados ao uso de álcool;
– Essas estratégias precisam do apoio de sistemas de informação e estudos científicos sobre o impacto do álcool e os efeitos das políticas do álcool nos contextos nacional e cultural dos países americanos;
– Criação de rede regional de colaboradores para a redução dos problemas relacionados ao uso de álcool, indicados pelos países das Américas e com a cooperação técnica da OPAS;
– As políticas públicas do uso de álcool com eficácia cientificamente comprovada precisam ser implementadas e avaliadas em todos os países das Américas;
– Devem ser consideradas áreas prioritárias de ação o uso pesado de álcool, o consumo geral de álcool, o uso de álcool por mulheres (incluindo o uso de álcool por gestantes), jovens, menores de idade, indígenas e outras populações vulneráveis, beber e dirigir, violência, acidentes intencionais e não-intencionais desencadeados pelo uso de álcool e transtornos relacionados ao uso de álcool.
Em termos de implementação de políticas públicas do álcool, houve destaque para a política de controle social do álcool, com fechamento de bares em Diadema e restrição de venda de álcool após o período das 11:00 pm. Tais medidas acarretaram queda significativa nos índices de violência da região.
2.2) Álcool e redução de danos no Brasil
Apesar de todos os problemas que as bebidas alcoólicas trazem tanto à saúde como à sociedade, seu uso está inserido profundamente na cultura brasileira, fazendo parte tanto de festividades nacionais como o carnaval como da economia. Somado a isso há, por parte da população, a percepção de que álcool não é uma droga. Diante desse panorama, as políticas públicas brasileiras sobre o álcool contemplam a redução de prejuízos como uma importante estratégia de atuação com mensagens que foquem o beber responsável9. Ademais, há ONGs como o CONAR que buscam regulamentar as propagandas de álcool, evitando que essa prática almeje jovens menores de idade, use mensagens com conteúdo sexual e divulgue padrões que não o moderado de uso do álcool. Uma outra vertente das políticas de redução de danos é aquela feita pela indústria do álcool, em especial pela AmBev. Essa empresa, por meio de campanhas publicitárias, encoraja o público a evitar comportamentos de risco como o beber e dirigir e a evitar outras formas de uso que não sejam o uso responsável dessa substância.
3) Conclusões
O uso de bebidas alcoólicas é prática enraizada na América Latina, estando inserido em nosso meio e fazendo parte das festividades, da cultura e da economia da região. No entanto, o impacto que o uso dessa substância infere sobre a saúde pública é alarmante, com destaque para o uso de álcool por menores, o uso de bebidas alcoólicas associado com direção e a dependência dessa substância. Isso posto, é de vital importância que estratégias regionais e nacionais sobre a questão sejam desenvolvidas, incorporando abordagens baseadas em evidências culturalmente apropriadas, com prioridade dada para o uso pesado de álcool, o uso de álcool por mulheres (incluindo o uso de álcool por gestantes), jovens, menores de idade, indígenas e outras populações vulneráveis, assim como o uso de álcool associado com a violência e a implementação de medidas de redução de danos.
Fonte: Centro de Informações sobre Saúde e Álcool – CISA (www.cisa.org.br).