Tempo de leitura: menos de 1 minuto
Introdução
O desenvolvimento do alcoolismo em mulheres passa por diferentes caminhos daqueles que ocorrem com os homens. Partindo do ponto de vista biológico, as mulheres são metabolicamente menos tolerantes ao álcool do que os homens. Seu peso e a menor quantidade de água corporal, em detrimento da maior quantidade de gordura, associado a menor quantidade de enzimas metabolizadoras de álcool, implica o fato de que a intoxicação ocorra com o uso de metade da quantidade usada pelo homem. A vulnerabilidade para o desenvolvimento de complicações clínicas é maior entre as mulheres, e as mesmas sofrem mais risco de mortalidade que os homens. Também apresentam maior chance de desenvolver doenças hepáticas como cirrose, mesmo tendo consumido álcool por um período menor.
A literatura ressalta que apesar da dependência alcoólica entre mulheres apresentar um curso diferente, não justifica o pior prognóstico em relação aos homens e que a recuperação para elas em relação ao tempo de tratamento é semelhante. Quando a mulher procura tratamento, tem maior probabilidade de recuperação, na medida que percebe a gravidade do problema e procura maneiras de enfrentá-lo, mesmo com os poucos serviços que ofereçam atenção específica para elas. De maneira geral, as mulheres consomem álcool de forma menos freqüente do que os homens. Apesar da menor pressão social para iniciar o consumo do álcool, em detrimento da maior pressão para parar o uso, o julgamento social em relação à mulher usuária de álcool continua sendo muito árduo.
O atendimento à mulher usuária de álcool, por meio do atendimento individual ou em atividades grupais, gerou interesse dos autores em aprofundamento acerca desse universo. Elas raramente comparecem acompanhadas de algum familiar, maridos e/ou companheiros, como também há solicitação para que estes não saibam sobre a busca de tratamento, devido à vergonha e receio de fracassarem. O artigo desta semana visa a conhecer o perfil da mulher usuária de álcool, inserida em tratamento especializado para dependência química.
:: Métodos
Participaram do estudo 13 mulheres em tratamento especializado no ambulatório de clínica e pesquisa em álcool e drogas devido ao consumo alcoólico, independente de diagnósticos outros, exceto usuárias de substâncias ilícitas.
As mulheres são inseridas nesse serviço para detecção da necessidade de controle dos sintomas da síndrome de abstinência alcoólica. Posteriormente, seguem em atendimento em grupo a fim de discutir, tanto as estratégias que auxiliam na manutenção da abstinência, prevenção de recaída, como enfrentamento de situações cotidianas.
Utilizou-se a “história de vida” como método qualitativo, e como técnica, a entrevista semi-estruturada, gravada, com duração mínima de 60 min, deixando a entrevistada livre para trazer conteúdos além do questionado.
O tempo total de cada entrevista foi de até duas horas e meia.
Para aplicação do método “história de vida” optou-se por uma abordagem focalizada/ temática do momento vivenciado pelas mulheres estudadas. Desse modo, foi possível a utilização de entrevista semi-estruturada, com oito perguntas norteadoras, retratando o recorte de um determinado tema e período de vida das entrevistadas.
Os dados foram trabalhados por meio da Análise de Conteúdo.
:: Resultados e Discussão
:: Caracteristicas das entrevistadas:Média de 43 anos de idade; 84,6% católicas; 76,9% brancas; 46,1% com ocupação; 84,6% residiam com familiares; 53,8% casadas; 61,5% compareciam ao tratamento desacompanhadas; 77% têm filhos.
:: Trabalho e lazer antes do uso nocivo e a dependência ao álcool
As mulheres relataram o quanto consideravam estáveis suas vidas, pautadas por atividades sociais, de lazer e trabalho, antes de desenvolverem o uso nocivo do álcool. Para as entrevistadas, o trabalho significou a via de acesso às oportunidades de participação social, de ascensão, de melhoria das condições concretas de sobrevivência, que passou a ser uma referência do passado.
Um estudo mostrou que abuso e dependência de álcool apresentava-se mais entre mulheres que tinham poucos amigos, vizinhos e parentes próximos, quando comparado a mulheres que estavam quase diariamente em contato com alguém.
A participação de mulheres em atividades sociais ou de trabalho é considerada como fator de contribuição para o menor consumo de álcool. Porém, esses achados não vêm ao encontro dos relatos das mulheres desse estudo onde se detecta que as atividades sociais e de lazer, apesar de estarem preservadas, não foram suficientes para impedir a progressão do consumo do álcool. Se comparado ao homem, o trabalho tem outra representação social para a mulher: a dupla jornada de trabalho, o não reconhecimento social, a complementaridade da renda familiar, a incorporação subjetiva do desemprego como uma questão estrutural e não apenas conjuntural em suas vidas. Conforme aponta a literatura, as mulheres usuárias de álcool atribuem maior significado do uso a eventos internos, diferente dos homens, que atribuem a eventos relacionados ao trabalho. Além disso, elas são potencialmente mais sensíveis aos assuntos relativos às questões domésticas e de suas vidas íntimas.
Os aspectos psicopatológicos que justifiquem o aumento do consumo do álcool não foram relatados nas falas das mulheres. Entretanto, segundo a literatura há maior prevalência de transtornos afetivos entre usuárias(os) de álcool e dependentes de outras drogas do que na população em geral. Nas mulheres, o início de transtornos psiquiátricos, em sua maioria, precede o abuso de álcool, diferentemente do que ocorre no sexo oposto.
:: Perda do controle sobre o álcool e comprometimentos clínicos, sociais e familiares
Dados de estudo desenvolvido na Grã-Bretanha revelaram que 11% das mulheres bebem mais do que o nível recomendado de 14 unidades por semana, sendo que 2% bebem pesadamente, isto é, mais de 35 unidades por semana. As entrevistadas apontaram que a perda do controle sobre o consumo constante do álcool trouxe o descaso das atividades diárias, dentro dos critérios diagnósticos para uso nocivo e dependência do álcool. Percebeu-se nas falas o estreitamento do uso e as conseqüências sociais intensificadas.
A motivação para beber se relacionou com o alívio dos sintomas de abstinência do álcool e menos com situações sociais envolvidas no beber.
O consumo abusivo do álcool traz conseqüências para a mulher em vários aspectos físicos, que incluem miocardiopatia, miopatia e lesão cerebral. A hepatite alcoólica quase sempre progride para cirrose, inibição da ovulação, diminuição da fertilidade e vários problemas ginecológicos e obstétricos.
Outro mecanismo que explica o fato de as mulheres sofrerem complicações físicas mais precocemente que os homens, deve-se aos menores níveis séricos da enzima álcool-desidrogenase, envolvida na metabolização do álcool, que leva as mulheres a absorverem 30% a mais do álcool consumido.
Indivíduos com história de alcoolismo crônico apresentam um prejuízo de leve a moderado na memória de curto e longo prazo, como também na aprendizagem. A idéia de complicação social, freqüentemente implica fracasso em cumprir adequadamente um papel social esperado. A mulher assume diversos papéis na sociedade (mãe, filha, esposa, profissional), que pode sofrer interferência importante decorrente do uso excessivo do álcool, levando a prejuízos no desempenho desses papéis.
Em relação aos comprometimentos sociais decorrentes do consumo alcoólico, destaca-se as agressões verbais no contexto familiar. Para algumas das entrevistadas, estas aconteceram tanto na relação com os companheiros como também nas relações com outros familiares.
Os comprometimentos clínicos, sociais e familiares na vida dessas mulheres desenvolveram-se ao longo de um continuum, de acordo com o grau de dependência. À medida que elevaram o consumo alcoólico, deu-se o desencadeamento de problemas. Proporcionalmente, a motivação para buscarem tratamento, aconteceu em conseqüência da percepção desses prejuízos, tanto nos aspectos físicos e familiares, como emocionais. Porém, chegaram ao tratamento com comprometimentos importantes. Esse fato provavelmente, pode ter sido devido às barreiras enfrentadas: estruturais (falta de creche para seus filhos, de apoio psicológico, de ajuda legal), pessoais (falta de emprego, independência financeira e baixa receptividade dos profissionais de saúde) e sociais (oposição de familiares e amigos, como também do próprio estigma social).
Relatos de sentimentos de acolhimento e respeito na chegada ao tratamento, corroboram com resultados da literatura, que apontam a importância de ambiente favorável, com menos barreiras estruturais e sociais, que possibilitem não apenas a entrada, como também a adesão da mulher usuária de álcool e outras drogas ao tratamento. Considera-se fundamental que os profissionais de saúde, ao abordarem essa clientela devam abster-se de atitudes preconceituosas.
Para as mulheres do presente estudo, a necessidade em voltar a acreditar em si, é narrada como meio de resgate da identidade, comprometida durante todo o processo de perdas com o consumo do álcool, também utilizada como mecanismo de sustentação da abstinência. (Re)aprender a viver e lidar com a dependência significa para essas mulheres uma luta constante. Para trabalhar a prevenção de recaída dessa clientela, a atenção deve estar direcionada a situações específicas e os serviços de tratamentos devem oferecer atendimentos em grupos homogêneos, trabalhar a auto-estima e o manejo das perdas sociais.
Fonte: Álcool e Drogas sem distorção