Ressaca

Tempo de leitura: menos de 1 minuto

Arlindo dos Santos

Numa das muitas e saborosas cronicas assinadas pelo brasileiro Luís Fernando Veríssimo – bastante conhecido pela sua vasta obra –, a ressaca, resultado do consumo excessivo do álcool, é tratada com graça ímpar, alegria e muito talento. Aborda o estado precário da condição humana, dum modo só ao alcance de quem domina bem este estilo de escrita.

Diz ele que as bebedeiras de antigamente eram mais dignas porque “você as tomava sabendo que no dia seguinte estaria no inferno. As novas gerações não conhecem ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores”.
Não vou discutir a dignidade da bebedeira, nem o seus resultados. Não sou de grandes copos e se não devo, por um lado, aceitar o orgulho de apanhar um valente “pifo”, por outro, concordo com a verdade. Sim, uma grande “carraspana” pode-nos levar à beira do inferno. Só há ressaca se houver bebida alcoólica, bêbados e bebedeira. Portanto, há que admitir que por cá, as ressacas abundam. Todos sabemos como foi e tem sido dada pouca ou nenhuma atenção ao consumo exagerado da bebida, a ponto de se levar os cidadãos aos estados de embriaguez que conhecemos. Está na moda dizer-se que tudo o que está mal é obra do executivo. Neste caso, há fortes razões para se afirmar isso, embora o resultado dessa enorme falha da governação angolana seja bastante antiga. Há muito que somos um país de consumo elevado de álcool (e de outras drogas infelizmente). Consomem-no os homens, as mulheres, os jovens e até as crianças, em representação de diversas classes e estratos da sociedade. Não é casual o fenomeno do alcoolismo, havendo muitas justificações para o seu enraizamento no nosso povo. Desde as questões de ordem genética que conduzem ao despertar dos ânimos e sensibilidades gustativas, aos factores subjetivos que levam gente a cair no maldito vício da vontade. A verdade, é que se orientou uma população que se deixa conduzir com facilidade para a área da bebida, da branda à forte, seja a destilação ou fermentação da glicose de cereais, raízes ou frutas. Nós cá não somos esquisitos. O pior do vício são as ressacas, das quais nos tem sido difícil sair. São buracos da dimensão do inferno, tal como fantasia Veríssimo. Buracos cavados no colonialismo e que, desde os primórdios da República Popular, tenderam sempre a aumentar.
Fui notando ao longo dos anos, alguma falta de cuidado e bom senso, e a existência de uma certa negligência, próxima da irresponsabilidade, em pessoas que mandavam – e ainda mandam – quer no partido que governa o país, quer em áreas próprias e sensíveis dessa governação. Do meu ponto de vista, estas figuras não conseguem esconder nas suas ações, um velado propósito de atrofiarem a mente dos seus concidadãos. Uma espécie de aniquilamento premeditado das capacidades das pessoas fracas, impedindo-as de pensarem por si. Uma bebedeira coletiva de todo o tamanho, ministrada com a maior serenidade! Não estão isentos de culpa neste processo de atrofiamento, os oposicionistas políticos e aqueles que se vangloriavam de ser a sociedade civil angolana. Porque nada de positivo consta nos seus cadastros, em relação a este assunto. Convido os estimados leitores a comigo repararem em pequenos detalhes, capazes de esclarecer dúvidas: gigantescos comícios, passeatas e “sentadas” monumentais, muitos artistas, cerveja e vinho a rodos ao preço da ginguba torrada; incentivo e proliferação a nível nacional, à criação de espaços para o comércio desenfreado de bebidas e de práticas de bebedeiras; fomento livre das famosas janelas-abertas; músicas apelativas à bebedeira livremente cantadas e dançadas; o quase vazio da comunicação social na condenação destas práticas nocivas, as nenhumas ações de educação pública sobre esta matéria, seus males e consequências.
Não será isto suficiente para justificar desconfianças? Mas, se não bastasse o álcool, e juntássemos a isto a ridicularização da ignorância dos cidadãos exibidas em absurdas reportagens de rua feitas por jornalistas de televisão, sem cultura e noção da responsabilidade do seu trabalho; se verificarmos desapaixonadamente o deliberado afastamento do cidadão ao livro, que lhe é praticamente imposto, desde o seu preço proibitivo à lentidão e aparente – ou talvez não – falta de interesse com que se trata o dossier sobre a questão; o vagar com que se desenvolve e a ausência de figuras reconhecidas, experientes e qualificadas, que deveriam, obrigatoriamente, estar integradas nas comissões criadas há longo tempo para alavancar o assunto com a celeridade merecida; o arrepiante silêncio à volta deste assunto fundamental feito pelos responsáveis por esta questão, reitero, da maior urgência para o cidadão e para o país, é também revelador de reprovável descuido. Tudo isto me assegura uma certa legitimidade para também pensar que, poderá imperar (oxalá que não), um sombrio e triste desejo de se materializar a ideia fascista de que ao povo, mais vinho que livro, ao povo, pouco pão, menos livro. Estarei a exagerar? Talvez, mas olhem que não!
Voltando a Veríssimo, a ressaca, para além de se constituir numa manifestação de saúde, é um estado em que o consumidor tem que ter coragem para passar por ele, inclusive o que se esmera na arte de beber. Utiliza métodos para travar ressacas, como o “biombo”, uma espécie de cortina feita pelo leite ou bebida semelhante, tomada antes da festa ou da borga, que retarda o álcool de fazer nos estômagos o estrago habitual. É preciso mesmo coragem! “Olhem só o meu azar! Já bebi muito e não consigo embebedar-me!”, ouvi um dia um boemio a lamentar-se. Mas naquele tempo, até havia motivos para a malta se embebedar, o colono fazia alimentar ressacas de vários tipos, daquelas que desafiam os céus e os deuses, e ainda outras que eram tristes episódios de derrotas.
Neste último fim de semana, houve gente que sentiu os efeitos da ressaca. Soube-se de muitas bebedeiras, umas fingidas e outras que, pelo grau do produto ingerido, dificilmente enganavam. Houve gente que ficou mesmo nas bordas do inferno. Não foi necessária a dignificação da “rosca”, nem sequer foram as novas gerações a sentir os seus efeitos. Foi, na verdade, uma bebedeira de antigamente, como diria Veríssimo, com os velhos valores a serem tocados e a mostrarem como é enorme a falência do que se defende sem consistência, como são frágeis os tabus teimosamente resguardados. Quero crer que a eleição de Adalberto Costa Júnior para a presidência da Unita, foi uma espécie de bomba, um cocktail de muitos ingredientes, uma mistura de bebida forte e explosiva para oferecer a gente especial. Para os que andaram largos anos a embebedar-se com sonhos só realizáveis em mentes já de si embriagadas, que idealizaram uma sociedade composta por meia dúzia de magnatas e milhões de incultos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *